Em dor, absolutamente só, fitava com olhar parado o nada. Teve tudo. Oportunidades e fortuna. Esta ainda preservava, apenas não podia dela mais desfrutar. Hoje era incapaz de erguer o braço, alguém tinha que lhe dar comida, trocar suas vestes, banhá-lo. Olhava para tantos cuidadores com olhar cinzento. Não os conhecia, nem seus nomes sabia. Sentia a falsidade de seus sorrisos piedosos. Com clareza se via naqueles rostos que tudo sempre fora falso, dissimulado. Buscava ao redor um olhar conhecido, alguém familiar, um irmão, um sobrinho, uma ama de leite, um amor verdadeiro. Como tê-lo agora se nunca cultivou tais preciosidades? Comprara tudo e todos que queria, e eles lhe fingiam afeto. Agora, sozinho frente à imensa janela aberta era incapaz de se levantar e cerrar suas abas. O frio lhe doía os ossos. Podia gritar irritado e sabia que em segundos um bando de interesseiros bajuladores ali estaria para lhe acudir. Deu preguiça. Deixou o vento frio lhe chibatar o rosto, era até prazeroso, aliviava as dores físicas.
O entardecer estava lindo. As montanhas, os tons de vermelho, o céu em chamas. Uma lágrima quase lhe escapa dos olhos. Deixou-se ficar em dor.
Repensava a vida vazia, que passou em lampejo.
Faria tudo diferente se tivesse outra chance? Talvez não. Fora forjado assim. Impossível mudar. Perdido em devaneios quase adormeceu. Não! Dormir não! Tenho que manter lucidez. Nada de jogar tempo fora.
Tempo, era o que não tinha mais. Sim, gastou todo seu estoque com avareza, intrigas, espalhando cizânia e raiva. Gritava com todoss tudo tinha que ser exatamente como queria. E agora? Um sem vontade própria a mercê de desconhecidos e vorazes fingidos, a espera de sua partida final.
Pensamentos em abundância excessiva. Sentia além das companheiras dores, um aperto no peito magro.
Uma mão pousou em seu ombro com carinho jamais sentido. As dores de imediato sumiram, o frio vindo da janela sumiu. Prazer, algo que há muito desconhecia, sentiu.
Sem coragem de virar o rosto, de olhos bem abertos, sussurrou:
— Quem está ai? Quem é você?
Uma voz de pureza ímpar respondeu em tom de canto:
— Um amigo.
— Não tenho amigos, tenho interesseiros e abutres a me rodear.
— Bom, você fez seu caminho, a escolha sempre foi sua.
Enrijeceu em pavor.
— Você é um anjo?
— Já me trataram como tal.
Sentiu-se no ar um leve sorriso em tom irônico.
— Então é a morte que veio me buscar, embargado em medos arriscou.
— Não, não sou a morte. Ela nunca lhe chegará pelas costas. Um dia vai ter que lhe encarar frente a frente mirá-la nos olhos, pois ali estará toda sua vida e você a verá quadro a quadro. Mas não tenha medo, pois ela apenas a cessação da vida. É sempre calma. A morte é bela e encantadora.
—Mas quem é você afinal?
— Um amigo simplesmente, sou parte de você.
— E está aqui por quê?
— Você me chamou mesmo sem saber. Vivi todos estes anos escondido dentro de você, mas nunca pude me manifestar. Sua ira, seu ódio por tudo e todos, me afundava cada vez mais em solidão e tristeza.
— Mas por que agora?
— A sensação de mortalidade, de que não se é eterno, de certa forma abrandou seu pensar. Até os mais distantes já arriscam de ti se aproximarem. E não me refiro aos aproveitares ou corsários com sede de vingança e posses. Refiro-me aos que realmente conseguem hoje te querer bem.
— Posso ver seu rosto?
— Você o vê todo dia, só não percebe.
— Pode ficar comigo? Há tempos não sinto tamanha paz.
— Estive e estarei sempre com você. Partiremos juntos.
— Falta muito?
— Não sei dizer, mas o que importa? Repito, a morte é bela e libertadora, nada há o que temer.
— Fica mais.
— Estou aqui, basta chamar.
Vento forte fez estrondar folha da janela em barulho ensurdecedor, amplificado pelo vazio do enorme quarto as tábuas corridas do chão pareciam balançar em ondas.
Quase se levantou de salto. Rapidez juvenil virou-se em busca de alguém. O que viu foram sombras a dançar sob a luz de uma lua, que já se fazia dona do céu.
Teria sonhado? A doença, os medicamentos estariam a lhe criar sensações?
Deixou-se ficar. Não sentia tanta dor. A pressão em seu ombro ainda estava presente e, como fonte de fresca água, escorria por todo seu corpo.
Logo entraria um séquito de cuidadores e parentes a falar alto e sem parar. Prometeu para si que sorriria para todos e não resmungaria palavra.
Tinha agora consciência de que jamais estaria sozinho.
Publicado em Uberlândia Hoje 26 de março de 2017