segunda-feira, agosto 27

Faz de conta





Fazia-se tarde. Final de dia calmo, sem muita novidade. Um dia comum, mas vencido com muito sossego. A tristeza é que era domingo e que quando novamente o sol mostrasse seu dourado ouro de inverno seco, sem muito frio, começaria uma segunda-feira. Ainda não entendo a birra que tenho com uma segundona.

Acho que quase todo mundo tem. Talvez pelo fato de levantar mais cedo, ter compromisso riscado, alguma ressaca, ou algum desamor de fim de semana. A verdade é que, segundo pesquisa não realizada, nem registrada no TSE ou em cartório algum, noventa por cento dos humanos preferem ardorosamente que a semana comece em uma terça. Há até um projeto lei enviado ao congresso, que talvez venha a ser submetido à consulta pública pelo fim das segundas-feiras.

O problema é que nossos políticos lá na capital desconhecem as segundas-feiras e já a aboliram de seus calendários de mesa. E tem mais. Riscaram também as sextas. Fica complicado para eles entenderem o que é uma segunda. Talvez fazer passeatas, bater panelas, acender e apagar luzes, mobilizar a imprensa, pintar a cara e realizar carreatas país afora, consiga sensibilizar a classe política. Lembrando que o ano é de eleições, se algum candidato colocar em seu programa de governo a extinção do triste dia, tem meu voto. Duro é que sabemos que uma vez eleito, adeus promessas.

O domingo escorria entre as árvores, horizontes e dedos. O recolhimento se fazia em ritmo de mosteiro. Cada um buscando sua clausura interna. O ciclo se fechava mais uma vez. Nem passarinho queria piar um boa noite. Nosso gato sem dono miou baixo, pedindo a derradeira refeição do longo dia.

Os grunhidos estridentes e horríveis de apresentadores de programas de televisão dominicais se faziam ouvir em janelas a piscar luzes em flashes, criando clima ainda mais deprimente para o fim de tarde. Busquei o som de Aretha Franklin, "I Say a Little Prayer". Tinha que ser. Uma das vozes mais lindas do planeta se calou semana passada.

"The moment I wake up/ Before I put on my makeup/I say a little pray for you/ While combing my hair now/ And wondering what dress to wear now/ I say a little prayer for you (...) "

Seguramente ela não se referia a um acordar na segunda-feira. Em voz murmúrio, me dirijo ao gato. Este, mais preocupado com a ração do que com a razão de minhas viagens mentais.

Atento à musica, com tristeza me lembrando Aretha, sinto um frio percorrer o corpo. Olhos embaçam com poça de lágrimas que ali se formam. Olhos d'água. Reze por nós rainha, reze por nós.

Um som me chama atenção. Na quadra começam a jogar bola. O som do couro no cimento. Começo a narrar o jogo sem nada ver:
E as equipes entram em campo! As torcidas vão a loucura, o som de foguetes é alucinante! Fumaça colorida toma conta de todo gramado! Vem-me Elis cantando Wilson Simonal: "Brasil está vazio na tarde de domingo, né? Olha o sambão, aqui é o país do futebol".

Continuo a narração da peleja. O zagueiro avança com a bola para o meio campo! Ataque perigoso, chute forte e a bola explode na rede de arame atrás do gol. Tiro de meta! O goleiro rapidamente coloca a pelota no meio de campo. Um chute certeiro e a bola tinhosa entra na gaveta, ali onde a coruja dorme (termo que ouvi no rádio e gostei). É goooooolaço!!!!!

Desligo o pensamento e resolvo ir até a quadra assistir um pouco do bate bola.

Apenas um dos holofotes estava aceso, projetando fantasmagórica sombra sobre o espaço. De um lado escuro, de minha posição quase nada se via. Percebi um pequeno movimento saindo da penumbra, um arrastar de bola. Um menino, sozinho, estava a jogar. Os adversários eram imaginários como os meus em minha narração de longe. Senti novamente aperto. Um sentimento sem nome. O garoto tocou a bola com desenvoltura, passou por um, por dois, deu chapéu no terceiro, em um faz de conta. Craque magnífico, driblou o goleiro invisível e chutou forte para as redes. Virou como a abraçar seu time, pulou, se fez estátua com braço erguido e punho cerrado com Reinaldo do Galo fazia e em silêncio gritou seu gol.

Saí manso, sem que ele me percebesse. Não queria matar aquele sonho, como tantos mataram os meus. Comemorei o gol com sorriso triste. A solidão tem mil faces. Uma criança não deveria brincar só.







Publicado em Diário de Uberlândia em 26 de agosto de 2018

quarta-feira, agosto 22

Tutubarão




Outro dia vazio de vontade de sair e ver gente. Sem nada absolutamente para fazer, comecei a avaliar minhas opções. Faxinar a casa? Ah não, outra vez não! Serviço de casa não tem fim, pois tudo que fizer hoje, logo e rápido vem repetição. Como dono de casa sei bem disso e entendo perfeitamente os motivos que levam as(os) donas(os) de casa profissionais a surtarem, depois de pouco tempo de rotina chata e sem criatividade. A repetição leva à perfeição, dizem alguns. Quando se trata de afazeres domésticos acho que cabe mais: a repetição leva à piração.

Dispensei a faxina e literalmente deixei de pensar nela. Fica para outro dia. Ler um bom livro, taí uma ideia. Passei o olhar pela estante, corri o dedo entre meus companheiros. Não, sem essa de ler! Hoje iria dar muito trabalho. Cabeça preguiçosa, já sabia o que aconteceria. Iria ler a mesma página duas, três vezes e lá na frente teria que voltar, pois a sensação de ter perdido alguma coisa ficaria me atazanando. Deixa pra lá, os livros não iriam fugir mesmo! Bom, aí não posso afirmar com tanta certeza, pois tenho observado fatos estranhos em minha estante. Na quietança da noite, lá bem de madrugada, não foi uma, nem duas vezes, que percebo um burburinho, um conversar em cochicho, lá pelas bandas da estante. Tenho comigo que os livros trocam ideias entre si em momentos assim. Ponho atenção, mas pesco poucas palavras. Não consegui flagrar esse alegre convescote literário, porém suspeito do cardápio.

O que sei é que nas manhãs que precedem tais encontros tudo fica fora do lugar. A maioria dos livros já não está onde os coloquei e muitos se encontram espalhados pelo chão, dando a entender que o porre foi homérico. Não raro, às vezes encontro páginas rasgadas ou amassadas. Alguma desavença de conteúdo?

Enfim, resolvi deixar meus livros em paz.

Fazer o quê? Do nada, num silêncio próprio dele, o gato entra sem pedir licença, a miar um nãooo, nãooooo, comprido e sempre em negativa.
Bicho de rua nos adotou, aparentemente por puro interesse. Como o gato anterior que também me adotou e que foi ameaçado por ser manso, esse é tal e qual, só que mais arisco. Por ser um bicho erado sabe bem distinguir quem lhe gosta e foge das gentes de má índole. É um ótimo juiz da malvadeza humana.
Já comeu hoje gato? Responde um sonoro nãoooooo.

Coloco a ração com um bom sache de peixe misturado. Ele come feito onça que um dia sonhou ser. Depois, sem a mínima cerimônia, refastela-se no sofá e dorme o sono dos justos. Protegido do perigo e ameaças é só paz. Quando a noite pega a cair, boceja feito leão, que também sonhou ser, dá uma pandilhada daquelas que começam no focinho e em ondas chegam à pontinha do rabo. Deixa um nãoooooo para trás e desaparece entre moitas e sombras, Agora, só amanhã.
Gato tratado, horta cuidada, fui buscar companhia das piores: televisão.

Até que o tempo pedia, já que um friozinho se fazia sentir e o sol com sono, não estava mais com jeito de bons amigos.

Assim, me aventurei pela televisão. O cara que inventou o controle remoto merecia um Nobel. Aparelhinho bem mais importante do que muita coisa inventada. Não trocaria um controle remoto por uma batedeira de bolo, uma faca elétrica, ou por um Sputnik novinho.

Pronto, acomodado entre almofadas e controle na mão ponho-me a buscar.

Doido, mas com tanto canal não acho nada que prenda minha atenção. Vai daqui, vai dali, dei com um filme super trash: O Tubarão de duas cabeças. Tem coisa melhor, ou pior, para não pensar em nada? Ali me deixei ficar. Era a semana do tubarão.

História a mesma e, se não me engano, nos três filmes que vi um atrás do outro, os atores também são os mesmos. Em cada um dos filmes eles são destroçados, mastigados e jogados para o alto. As cabeças brigando cada uma por um pedaço. Muda o filme e lá está a mocinha do biquíni, o moço forte e heroico, além de figurantes que obviamente só aparecem para serem comidos pelo bicéfalo peixão. Muito sangue na água, muita gritaria. Cenas que poderiam ser gravadas em fundo de quintal ou garagem. Contudo, no estado em que me encontrava, só não encarava novela mexicana ou turca, pois aí é para acabar com os pequis de Goiás.

Perco-me em tempo com essas produções estranhas. Penso no sufoco por falta de dinheiro dos caras que se propõem a fazer essas bobagens.
Curto os defeitos pouco especiais que, de tão ruins, parecem gozação. Além disso, nesses filmes os bichos assuntam menos do que o Pikachu ou os Teletubbies.
Quanto pouco dinheiro desperdiçado para produção de besteira.

Bom, aguentei dois ou três rounds e vi que o melhor era sair de casa, encontrar amigos e jogar conversa fora. Pena que as conversas hoje só giram em torno de futebol ou política polarizada. Não sei o que soa mais trash.
De qualquer maneira, peguei a programação da série. Caso alguém se sinta vazio, vá lá.

Sharknado, Tubarões de Areia, Avalanche de Tubarões, Tubarão Fantasma, Tubarão Zumbi e, o mais "original" em título, Jurassic Shark. Deixa o Spielberg saber da brincadeira sonora que copiaram de seu "Park".

Em tempo, anunciaram um novo "sucesso" para a semana:

O tubarão de quatro cabeças. Perco por nada!






Publicada em Diário de Uberlândia em 19 de agosto de 2018

sexta-feira, agosto 17

Calango






- Mãe tem um jacaré na piscina!
- O que isso menina, onde já se viu! Estamos em Uberlândia e não em uma fazenda no Pantanal.
- Mas mãe, tem um jacaré na piscina lá no quintal, vem, mãe, vem ver!
- Ô menina, tem não, isso é coisa de sua imaginação. Andou escutando histórias de seu pai outra vez?
- Nem conversei direito com o papai hoje, e não é história. Tem um jacaré na nossa piscina. Vem mãe, juro que tem e se a gente não salvar ele vai morrer afogado.
- Então tá, vamos lá ver o tal jacaré. Deve ser aquele do Peter Pan, que comeu a mão do capitão Gancho. Brincou a mãe com o apavoramento da pequena criança.
Numa toada ligeira a menina puxava a mãe pelo bolso da calça jeans, com tanta força que se fosse outro tecido teria estourado.
Chegando ao quintal depararam com cena inusitada. Um calango, daqueles criados, que hora se debatia e nadava em círculos, hora se deixava ficar exausto a boiar, como a buscar fôlego e forças para conseguir se livrar daquela imensidão de água, que teimava em tentar engoli-lo. O instinto de sobrevivência jamais iria abandoná-lo e aquele lagarto iria tentar se safar enquanto o menor músculo de seu esguio corpo respondesse aos seus primitivos comandos neurais. A água estava baixa, estratégia para evitar que pombas às dezenas ali não viessem saciar sede e sujar toda as pedras das quais tão bem delas cuidava.

Calango deu azar, talvez distraído com alguma borboleta e sonhando com almoço garantido, errou a pisada e despencou piscina adentro.
- Não falei que tinha! Eufórica e, com ar de vitória, comemorou a mocinha do alto de seus poucos anos de vida.
- Jacaré né? Riu a mãe
- É um calango filha. Certo que é dos grandes, mas é um calango e não vai te pegar. Disse isto, fazendo careta e fazendo cosquinhas nas costelas da menina.

- Agora me ajuda a salvar o pobre coitado, pega a redinha de catar folhas.
Com cuidado pescaram o bicho e o colocaram sobre macia grama. Afastaram alguns passos e ficaram a observar o coitado, ofegante, a se aquecer e lentamente recuperar forças. Passaram-se poucos minutos e a mando da mágica da vida, um pulo, uma carreira e lá se foi buscar refúgio na segurança fechada de exuberante canteiro de samambaias.

- Feliz agora? Seu "jacaré" está são e salvo. Me deixa correr para as panelas pois senão o almoço hoje não sai.
Beijou carinhosamente a filha e se foi a pensar que de um jeito ou de outro estavam no caminho certo. Pelo menos conseguiram passar para os filhos o amor e respeito a todas as coisas vivas. Mostrar a elas o mal que os homens estavam a fazer destruindo o lar de tantas criaturas. Derrubando o cerrado, enchendo a paisagem de falsos lagos, represas sem fim que de tão grandes, tudo destruíam à sua volta. As balelas que eram os programas de recomposição e preservação de margens que, no fim, viravam clube particular de alguns poucos.

Pelo menos, seus filhos cresciam dotados da consciência de que era preciso mudar para que o planeta, como o calango salvo, pudesse se recuperar novamente. Eles jamais jogariam lixo na rua, nunca como certos párias da raça humana ou colocariam fogo em mato, terrenos ou em montes de folhas rasteladas, espalhando fumaça para todos os lados em clara demonstração de egoismo e arrogância. Cresceriam sabendo que os recursos são limitados e, se queremos continuar aqui devemos aprender a pensar como a terra.

Estava quase chegando à cozinha quando novamente ouviu grito estridente da filha:
- Mãe tem uma onça na mangueira!
Sem disposição a deixar a conversa se estender, já meio de mau humor, voltou ao quintal.
- Cadê? Deve ser algum gato perdido à caça de passarinho. Então, me mostra! Resmungou.
A menininha, meio trêmula, apontava o dedinho para mancha escura em meio à folhagem densa da mangueira.
Olhou, apurou a vista, chegou mais perto. Uma descarga elétrica percorreu seu corpo de ponta-a-ponta, ficou lívida e imobilizada. Agarrou a filha no colo e saiu em desembestada carreira casa à dentro. Era uma onça.






Republicado em Diário de Uberlândia em 12 de agosto de 2019

segunda-feira, agosto 6

Finalíssima




O campo de futebol era interessante, grande que só, parecia maior do que os oficiais dos estádios ou "arenas", como está na moda agora. Aqui tenho de fazer uma pausa na prosa para um assunto que me intriga. Algo que me deixa fora do sério e confuso é essa mania de imitar os outros nas coisas mais bestas do mundo. Não sei quem inventou essa história de trocar estádio por arena, mas como nosso futebol anda tão ruim e violento posso até aceitar e acrescento, ao invés de jogadores, que se tornem gladiadores. Arena lhes cabe bem.

Outra babaquice, agora no basquete, foi a criação da denominação NBB, "Novo Basquete Brasil", numa imitação grotesca , alusão à toda poderosa NBA norte americana, National Basketball Association . Tenha a santa paciência! O que tem de "novo"? Vai ser novo até quando? Daqui a vinte anos ainda será essa bobagem de "novo"? Falta de criatividade e amor próprio puro e simples. Copia-se o que é bom, não essas trenheiras bestas. Até juiz virou árbitro! Bom, esse tem a ver com nossa conversa.

Na realidade a "arena" era um piquete sem uso. Terreno ondulado, possuía um murundu bem no meio do campo, fazendo com que de uma trave não se pudesse ver a outra. Os goleiros sempre tinham sensação de solidão em certos momentos do jogo, mas quando vinha ataque adversário parecia coisa de filme: se via primeiro as cabeças dos jogadores e só depois é que seus troncos apareciam e, em desenfreada, vinham morro abaixo para encher o pé na bola de capotão G18. Para os que só conhecem as bolas oficiais da FIFA, a letra G é de gomos de couro e o número 18 era quantidade deles. Os tais gomos, formavam a bola. Rara e cara por aquelas bandas.

Atrás de um dos gols havia uma mata fechada, bruta. Sucupiras, aroeiras, perobas-rosa robustas, pura madeira de lei, compunham a mata. Na beirada, mamas-cadelas carregadas de frutos e crianças, abrigavam casas de João-de-barro, passarada sempre irritada em dias de clássico.

Beirando um dos lados do campo havia um pasto de vacas nelore, recém paridas. Tudo bicho bravo a proteger cria.
Quando o chute saía torto e a bola rumava para a mata ou pasto, era um Deus nos acuda. Entre as árvores, além de cobras, corria boato de onça em tocaia, atraída pela algazarra. Ficava, diziam, encolhida em galho grosso a observar na escuridão das sombras a chance de levar um almoço fácil. Criança entrava lá nem!

Se não para lá e fosse bola para o pasto das vacas paridas, aí não tinha bicho escondido não, mais temidas do que as prováveis onças da mata, as brutas estavam todas relando a barriga no colonião, com suas crias no pé. E quem é que entra? Onça era mais mansa do que aquelas montanhas de músculos, prontas a defender prole com toda e descomunal força que lhes foi outorgada pela natureza.
Eram horas para decidir quem ia buscar a bola. Houve jogo cancelado, por conta de bola perdida. A regra estipulada era que o time que isolasse a bola assim, tinha que comprar outra por conta e trazer no domingo seguinte para encerrar a partida e, como disse, eram raras e caras. Mas fazer o quê?

Sorte é que quase sempre aparecia um moleque mais atrevido que arrastava barriga entre o pasto, furtivamente, evitando o olhar nervoso das zelosas mães e conseguia recuperar a dita. Se bem que, vez ou outra, o jeito era correr feito doido e se cortar todo na cerca, em pulo para fugir de pisoado de vaca enfurecida. Ganhava picolé e refrigerante como recompensa e virava alvo dos olhos gulosos das meninas moças de toda região.
Do outro lado ficavam as "arquibancadas". Bancos de tábua colocados em fileira ao longo de todo o gramado. Contudo, a maioria trazia seu banquinho ou assistia como as crianças, empoleirados em árvores. Mangueiras centenárias, que forneciam frondosa e fresca sombra. O comércio de churrasquinhos, cervejas, pinga e de tudo quanto há era farto e o povo ia com força. Era a única diversão de quem por lá morava ou vinha acompanhando outro time. Briga? Sempre, mas nada que uns bons tiros de Flober para o alto não apaziguasse.

Naquele domingo acontecia a grande final do campeonato. O Roção como era conhecido. Jogo do time da casa contra outro da zona rural de município vizinho. O jogo corria frouxo. Alguns de botina, outros descalços, pois estes não se davam com calçado algum para jogar. Alguns privilegiados, que haviam juntado dinheiro, exibiam vistosas e coloridas chuteiras. Os jogos de camisa eram bonitos. Presentes de fazendeiros ou de comerciantes das regiões de origem dos times. Pareciam aqueles de Fórmula 1 de tanta propaganda de patrocinadores que carregavam.

Perto de acabar e zero a zero no placar. Foi quando um do time local deu um chute de efeito do campo de defesa. A bola apareceu do nada por sobre o morrote do meio de campo e, pegando o goleiro de surpresa, foi morrer no fundo da rede! A torcida explodiu de alegria. Mas qual, o apito do juiz se fez trinar e ele não apontou o meio de campo, anulando o gol.

─ Não, não, estava em posição irregular!
O capitão do time, homem calmo de fala mansa e educada ponderou:
─ Olha sêo juiz, não quero ensinar o pai nosso para o vigário, mas não tem impedimento se a bola foi lançada do nosso campo.
Não adiantou nada.
─ Quem manda aqui sou eu, gol anulado!
Apesar das vaias e irritação da plateia, o jogo seguiu.
Quase no finalzinho do tempo regulamentar, escanteio para o time da casa. Bola batida com perfeição, direto na cabeça do zagueiro e rolou mansa rede adentro. GOOOOLLLLLLL, levantou a moçada.
Novamente apito anulando o gol legítimo.
Novamente o educado capitão se aproximou do juiz, cabeça baixa, mãos para trás em sinal de respeito. Cochichou.
─ Sêo juiz, a regra reza que não existe impedimento em cobrança de escanteio. Longe de mim querer colocar ameaça, mas olha a nossa torcida, está enfezada e o senhor conhece o sistema aqui. Tem umas duzentas pessoas ali. Com o senhor apitando errado desse jeito, eu não vou dar conta de segurar esse povo não. Não me responsabilizo pela vossa segurança!
O juiz com cara de bravo, olhou aquele povão que espumava de ódio e revolta, desmanchou o semblante, caminhou para o meio do campo e chamou os capitães dos times.
Com cara séria, mas meio pálida, declarou solenemente:
─ É o seguinte, sabe esses dois gols que eu anulei? Pois é, analisei bem. Agora estão valendo! Festa geral. O time local levou a faixa do Roção 2018.
E não havia o tal árbitro de vídeo. Já pensou?
Obrigado Mestre!


Publicado em Diário de Uberlândia em 05 de agosto de 2018