"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
segunda-feira, novembro 26
Preparo
Parece coisa de fim de ano. Deu novembro já pelo meio. Por força de um celular a buscar remendo, me vi perdido no templo máximo do gastar sem vontade, um shopping. Quem já teve na infância curiosidade de ver como funciona um formigueiro por dentro, sabe bem o que quero mostrar. Pois, criança curiosa, pai me levou certa feita ao maravilhoso Centro de Amostras que, como as imponentes árvores da Avenida Afonso Pena, foi ao chão. Lá vi o tal. Corredores em idas e vindas, ninheiras, roça de fungo, aposentos de rainha. Em encanto colei nariz no vidro e por nada queria me ir. Hipnose. Arrastado sem sentir, pensei comigo que um dia iria fazer um. Anos e cicatrizes de todas as formas, corpo e alma criando calos. Coração sempre pronto, o tempo se fez vento e junto me carregou. Um dia fiz o meu formigueiro.
Como a criança que nunca me largou e muito ensinou saí a caçar tanajura. Criei caminhos, ninhos em potes, tratei-as com pétalas de rosa, suculentas e rubras Acalifas, folhas de amargoseira, Contas-de-Santa-Bárbara, assim por cá nomeadas. Além de apreciada pelas formigas diz a lenda que Santa Bárbara protege contra raios e tempestades. Lá em casa tinha muita reza a mando Vó. Em noites de tempestade recitar ela, vela acessa nos punha a recitar:
"Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura (...)"
Nunca medo de tempestade tive, trovão sempre me pôs dormir em estranha paz. A chuva, uma deliciosa cadência a acalmar loucos e feridos na alma.
Pois assim fiz meu formigueiro. Um dia depois de longa travessia, encontrei-o em imobilidade de morte. Alguém de coração negro e vestido com manta de inveja o envenenou. Perdi gosto, desisti das gentes, me recolhi em copas.
Assim me vi dentro de imenso formigueiro de gente. Cheiros e cores passavam em raso vôo por todos os lados. Esbarrões e olhares. Gente produzida, eu de sandália Franciscana. Gente com elegantes cortes, eu sertanejando jeans surrado/camiseta antiga, e se vi, até buraco tinha. Uns a buscar reparo, eu o invisível.
Furdunço me agoniando. Gosto de feira, festa de rua e praças. Ali um estranho em fervedouro alheio.
Ligado no modo automático segui sem muita atenção.
Mas como não perceber o súbito nascer de árvores gigantes de plástico sem vida, a produzir frutos de vidro e cipós de luzes num piscar ritmado? Nas vitrines risonhos papais-noéis de vazio olhar. Alguns me abanaram a mão, cismei.
Começou novembro e com ele as armadilhas do gastar. Não sou apegado à religião, pois como Riobaldo de Rosa, o Guimarães e seu perfeito Grande sertão: veredas, tomei por minha verdade:
" O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; (...). Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. (…)”
Festeja-se o nascimento de Jesus, mas conta-se que ao chegar a um templo em Jerusalém deu com um enorme shopping a céu aberto.
Em fúrias soltou bois, cabras e pombas, detonou barracas, espalhou moedas pelo chão:
— "Tirem tudo isso daqui! A casa do meu Pai não é lugar pra ficar comprando e vendendo coisas!"
Obviamente não foram estas palavras mas algo assim. E o que vemos hoje? O aniversário Dele insano comercio.
Mas não é por razão esta que fico sempre triste nessa época. A solidão aperta, saudade de nem sei mais o quê. A hipocrisia anda solta.
"(...) Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias… (...)"
Aliquis ora pro nobis nóbis
Publicado em Diário de Uberlândia em 26 de novembro de 2018
quarta-feira, novembro 21
Mercado de pulgas
Chuvinha mansa a trazer dia. Vontade de ficar um pouco mais debaixo das cobertas. Quem não gostaria? Infelizmente tinha um levantar a me esperar. Tinha nada, pois era domingo e podia ficar o tempo que quisesse ali, mas detesto perder a manhã, parte mais linda do dia. Os cheiros são novos, os olhares das gentes quase sempre mansos e vagarosos.
O delicioso Mercado de Pulgas a visitar. Perfeito para o dia.
Tomei rumo para o Mercado Municipal onde acontece sempre o evento. Cá comigo no pensar, tomo um belo café lá por perto e me deixo ficar a contemplar objetos e pessoas. Gente risonha, bonita no ver e comportar. Nenhuma desavença, discussão só de preços, pechinchar é preciso.
Dei com os burros n'água. O Mercado de Pulgas fugiu da garoa. Mas o tempo riu tímido. Poderia ter acontecido. A chuvinha se desfez em um lindo dia de céu azul, sem nuvens. Mas como adivinhar? A feirinha da Sérgio Pacheco sempre acontece. Sinal de chuva, praça vazia. Poucas barracas, expositores, cantores e meu delicioso acarajé some. Contento-me quando lá, com o também saboroso churrasquinho ou com o yakisoba abrasileirado em tempero e sabor.
Mercado de pulgas. Não aconteceu o acontecido. Frustrado, passei a dar voltas sem rumo mercado adentro. Sinto-me um pouco incomodado, apreciador que sou de mercados municipais. Afinal, conhece-se uma cidade por meio deles.
Já pensou ir a Pádua e não conhecer o seu belo centro de comércio de cores e aromas? E a Boquería em Barcelona? Para os grandes vôos, o Grande Mercado de Budapeste ou na Tailândia, o fantástico Mercado Flutuante em Damnoen Saduak.
Se quiser ficar por perto saiba que o de Belo Horizonte é considerado um dos dez melhores do mundo. Uma viagem ao de Montes Claros ou São Luis, que também tem o seu, assim como Salvador e São Paulo com vitrais de Conrado Sorgenicht Filho.
O nosso é tímido e repetitivo em mercadorias. Parece que todo mundo, com raras exceções, vende a mesma coisa. Mas gosto dele assim mesmo e o frequento desde os tempos de estudante.
Os bares e algumas lojas fazem hoje seu diferencial. E, lógico, as manifestações artísticas lhe dão alma e mais vida.
Hora conto a história de um banquinho que comprei da senhora do acarajé, do box lá no canto do estacionamento. A negociação foi divertida e o banquinho nem era para vender. Era de uso da venda.
Ainda confuso com o dia e esperança perdida das belas antiguidades das pulgas, me deixei levar.
Do nada, meio abafado, senti um batido a lembrar um ponto de umbanda:
"Ogum é guerreiro/Que nos livra de todo mal/ Na Aruanda ele é cavaleiro/ Oh na Umbanda ele é general ogunhê ".
Assim imaginei ouvir. Segui em hipnose. Deparei-me com uma porta aberta, que já dava em escada, como a convidar para entrar. Sem cerimônia subi devagar degrau por degrau, a imaginar o que lá poderia encontrar. Bela surpresa. Gente bonita, colorida, lugar de ali se deixar. Sorrisos sinceros na chegada, sem estranhamento nenhum ou olhar de cima para baixo como a julgar. Nem um "filho de quem"? Tão raro por cá.
Não sabia se era ensaio ou exercício, mas era lindo. A música, o rodar de vestidos de chita coloridos. Lembrei de minha adolescência e de tempos bem menos distantes. Deu vontade de entrar na roda, cantar, acompanhar o bater de palmas. Faltou coragem. Os olhos quiseram me pregar peça da alma e lágrimas ali se juntaram como orvalho em folha larga da mata.
Sentei em degrau da escada e a cabeça em rodopio me levou a ver lugares, gente, paisagem.
Estranho não nos deixarmos mais chorar. Respirei fundo em alegria diferente, com cheiro de anis, biscoito de araruta e Oui de Lancome. Ganhei o domingo. Não houve mais mercado de pulgas. Pelo menos até agora, mas garimpei o "Centro de teatro de Uberlândia", assim dizia a placa esmaltada no alto da porta de entrada.
Ali, seguro, vou voltar sempre.
"Eu vi chover, eu vi relampear/ Eu vi chover/ Eu vi relampear/ Mas mesmo assim o céu estava azul (...)" (Ponto de Oxóssi)
Publicado em Jornal Diário de Uberlândia em 18 de novembro de 2018
segunda-feira, novembro 12
Casa laranja
Foto de Marcos - Pousada Mondego
Ouro Preto
Casarão secular tem estilo chalé, do final do império. Lambrequins rendilhados nos beirais, sinal de luxo e riqueza à época. Seus jardins imensos guardam ainda ruínas de um velho monjolo. A grande pedra, que tanto moeu, se encontra jogada em um canto, cercada de mato e histórias. Seus gemidos ainda podem ser ouvidos. Bastam atenção e espírito leve.
O jardim se espalha até a beira do córrego do Caquende que um dia foi limpo e piscoso. Mãos e atos humanos se encarregaram de transformá-lo em um nada de vida. Alguns heroicos sapos ainda conseguem, sabe-se como, cantar triste sinfonia de sobrevivência. Talvez em seu coaxar lamuriento se voltem tristes para o que ali antes havia. Memória genética da destruição.
Colocando-se de costas para o pobre riacho tens a impressão nítida de outros tempos. Ciprestes imensos em disciplinada fileira se dobram em música ao vento, que vem lá da igreja do Rosário.
A construção quase se esconde entre vegetação. Trepadeiras floridas e buquês de hortênsias formam caminho, iluminando pequena trilha batida entre grama e mato. Caramanchão meio despido deixa cair cachos de belas flores miudinhas. Pequenas jóias escondidas no cinza do paredão de pedra, avencas em renda portuguesa e samambaias atrevidas em tanto verde, despencam em fartura selvagem/bela, apoiadas em aveludado musgo eternamente úmido.
Cochos cavados em pedra se deixam largados pelos cantos do quintal, calangos ali tomam sol em espaçosa segurança.
Dois leões, também em pedra, olham para o vazio do portão de entrada. Esfinges sem segredos a cobrarem apenas aguardando, aguardando. A fazer companhia aos inanimados felinos, dois cães. Aparentando braveza só no tamanho, se deixam levar a troco do menor afago. Sentem-se sós de gente. O casarão parece divido em três partes. A varanda dá acesso por um lado. Uma pequena quinta se deixa cercar por paredes espessas. Chega-se a ele por um lance de três degraus e portal fechado com pesado portão de ferro. É ali, ao fundo, que se encontra o caramanchão e as avencas.
A cor laranja das paredes externas confere certa imponência à construção. De longe, do alto se vê.
Um segundo andar em janelas permite imaginar as dimensões internas, causam certa surpresa a princípio.
A frente de cada janela uma sacada curta, parapeito também de ferro com desenhos que lembram arabescos.
Ali talvez esteja o mistério, a magia de toda construção. Não ali fisicamente, erguida em imobilidade eterna. Mas devido a uma curiosa e diária visita.
Toda tarde, antes do repicar dos sinos de Vila Rica, na mesma sacada, pousa manso um belo tucano. Anos repetindo a rotina. Esperava-se que uma vez pousado se virasse para as torres e casas ao longe, para as montanhas ou para o jardim. Não. O pouso é feito sempre de frente para a janela. Talvez a solidão aí o levasse para apreciar seu reflexo e sentir certo conforto. O abandono e solidão menos lhe doeriam. Penso que bela ave pode vir sistematicamente em recordação de alguém ou alguma coisa passada. Ao invés de imenso salão vazio e escuro, iluminação se dá tão e somente por pequenas frestas do telhado sem forro. Talvez o pássaro ouvisse música e atentaria para algum baile. Belas damas em trajes deslumbrantes, com decotes, cores, colares de pedras preciosas e tiaras a espalharem mais e mais brilho. Cavalheiros elegantes, alguns com trajes da guarda imperial, brindavam champanhe em talhadas taças de cristal.
Uma orquestra entoava os sucessos de época vindos da corte.
Abaixo, na entrada hoje calçada, carruagens e belos cavalos eram dispostos espalhados pelo encantado jardim.
Seriam estas as lembranças do tucano? O que sentia bela e pobre criatura em suas visitas diárias?
O escurecer vem do Itacolomy, desce as encostas da serra e lança-se pelo campo. Muda, abraça as primeiras casas da cidade, corre suas ruas, becos e vielas, envolvendo pessoas e animais. Envolve a vida. O tucano mesmo de costas, parece perceber o chegar frio da sombra. Sem soltar som que seja, se lança do parapeito de ferro. Ninguém sabe seu destino. Certo mesmo é que amanhã estará novamente naquela janela, revivendo novos bailes, novas músicas, preciosas lembranças. Amanhã.
Publicado em Jornal Diário de Uberlândia em 11 de novembro de 2018
terça-feira, novembro 6
Acabou
Amanheceu segunda. Entre mortos e feridos se salvaram todos. Não, nem todos. Nunca em minha vida assisti a um embate tão duro entre duas correntes de pensamento. O nível das discussões foi tão baixo, que embrulhava o estômago. A raiva, o ódio e o rancor afloravam frente a qualquer comentário, por mais insignificante que fosse. Parecia pessoal. Havia uma permanente patrulha ideológica a espreitar redes sociais, prontas a apontar dedos e tecer ofensas, caso o digitado não dissesse exatamente o que um lado ou outro queria ouvir.
Catarse coletiva! Incompreendida, mas geral. Foi como se a porteira fosse aberta e a boiada inteira, imensa, em transe, sem saber ao certo o rumo, se lançasse em disparada diante de algo reprimido, indecifrável.
Não, não se salvaram todos. Amizades antigas desfeitas, agressões inúteis e toscas. A democracia pode ter sobrevivido ao pleito, mas seria o que que queríamos? Adversários se transformaram em inimigos mortais. Faltou razão, sobrou sectarismo e ódio. Faltou educação e respeito. Nunca, repito, vi tanto ódio oculto, profundo e represado, se lançar com tamanho vigor contra as rochas da razão e do bom senso, a ponto de romper as paredes "opressoras" de cada mente.
O vencer aqui ficou em segundo plano. A guerra, o digladiar tornou-se o esporte nacional.
Agora que tudo acabou, rezemos para que as patrulhas se desfaçam e que não surjam milícias nem de um lado, nem de outro. Que a normalidade democrática reine e permita que um país chamado Brasil passe a existir de fato. Que o respeito à nossa Constituição seja pleno e o sonho para o futuro seja possível.
Famílias e pedaços se recomponham, amigos voltem a brindar à vida e à felicidade de viver.
Aqueles que se sentem vitoriosos, que zelem para que esta vitória seja plena de paz e caminhe cadenciadamente e em harmonia. E aqueles que perderam, não se sintam derrotados, mas parte do processo mais belo de um país livre.
Que as discussões doravante sejam civilizadas e no campo das ideias, calcadas na razão.
Defender o que se acredita é saudável e meritório. Saber como defender é mais importante ainda.
Chega de divisão, chega de agressões e vinganças pessoais. O futuro de um país inteiro depende dessa luz para não correr risco de mergulhar em escuridão, pouco vista na história da humanidade, mas que, quando em trevas esteve, pagou preço incalculável pela aventura e desfaçatez de insanos. A História contempla esses momentos de horror e trevas.
Acreditemos, pois nossa pátria mãe gentil não pode e não deve passar por aventuras e correr riscos. Somos grandes, somos frágeis. O gigante se fere com um simples espinho de rosa. União! É hora de baixar a guarda e juntos caminharmos pacificamente rumo a um futuro que pode ser auspicioso ou fúnebre. Depende de nós, sempre de nós.
Não quero jamais concordar com Nelson Rodrigues quando disse:
"Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos."
Olhar à frente, um futuro nos espera. Vamos provar que o ácido gênio de nossa dramaturgia, autor de O Beijo no Asfalto, A Mulher sem Pecado e A Falecida, pode e estava errado.
Paz eu peço, paz eu espero. Ligue para o amigo com quem você rompeu, beije a mulher que pensou diferente. O primeiro passo para o fim é a divisão. Um pequeno tratado escrito no século IV a.C. já alertava guerreiro.
Nem Sun Tzu, nem Nelson Rodrigues. O futuro nos aguarda. Fazê-lo sólido depende apenas de nós. Afinal, não existem derrotados ou vitoriosos quando a nau navega a todos.
Viva a Democracia!
Publicado em Jornal Correio em 4 de novembro em 2018
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