Foto de Marcos - Pousada Mondego
Ouro Preto
Casarão secular tem estilo chalé, do final do império. Lambrequins rendilhados nos beirais, sinal de luxo e riqueza à época. Seus jardins imensos guardam ainda ruínas de um velho monjolo. A grande pedra, que tanto moeu, se encontra jogada em um canto, cercada de mato e histórias. Seus gemidos ainda podem ser ouvidos. Bastam atenção e espírito leve.
O jardim se espalha até a beira do córrego do Caquende que um dia foi limpo e piscoso. Mãos e atos humanos se encarregaram de transformá-lo em um nada de vida. Alguns heroicos sapos ainda conseguem, sabe-se como, cantar triste sinfonia de sobrevivência. Talvez em seu coaxar lamuriento se voltem tristes para o que ali antes havia. Memória genética da destruição.
Colocando-se de costas para o pobre riacho tens a impressão nítida de outros tempos. Ciprestes imensos em disciplinada fileira se dobram em música ao vento, que vem lá da igreja do Rosário.
A construção quase se esconde entre vegetação. Trepadeiras floridas e buquês de hortênsias formam caminho, iluminando pequena trilha batida entre grama e mato. Caramanchão meio despido deixa cair cachos de belas flores miudinhas. Pequenas jóias escondidas no cinza do paredão de pedra, avencas em renda portuguesa e samambaias atrevidas em tanto verde, despencam em fartura selvagem/bela, apoiadas em aveludado musgo eternamente úmido.
Cochos cavados em pedra se deixam largados pelos cantos do quintal, calangos ali tomam sol em espaçosa segurança.
Dois leões, também em pedra, olham para o vazio do portão de entrada. Esfinges sem segredos a cobrarem apenas aguardando, aguardando. A fazer companhia aos inanimados felinos, dois cães. Aparentando braveza só no tamanho, se deixam levar a troco do menor afago. Sentem-se sós de gente. O casarão parece divido em três partes. A varanda dá acesso por um lado. Uma pequena quinta se deixa cercar por paredes espessas. Chega-se a ele por um lance de três degraus e portal fechado com pesado portão de ferro. É ali, ao fundo, que se encontra o caramanchão e as avencas.
A cor laranja das paredes externas confere certa imponência à construção. De longe, do alto se vê.
Um segundo andar em janelas permite imaginar as dimensões internas, causam certa surpresa a princípio.
A frente de cada janela uma sacada curta, parapeito também de ferro com desenhos que lembram arabescos.
Ali talvez esteja o mistério, a magia de toda construção. Não ali fisicamente, erguida em imobilidade eterna. Mas devido a uma curiosa e diária visita.
Toda tarde, antes do repicar dos sinos de Vila Rica, na mesma sacada, pousa manso um belo tucano. Anos repetindo a rotina. Esperava-se que uma vez pousado se virasse para as torres e casas ao longe, para as montanhas ou para o jardim. Não. O pouso é feito sempre de frente para a janela. Talvez a solidão aí o levasse para apreciar seu reflexo e sentir certo conforto. O abandono e solidão menos lhe doeriam. Penso que bela ave pode vir sistematicamente em recordação de alguém ou alguma coisa passada. Ao invés de imenso salão vazio e escuro, iluminação se dá tão e somente por pequenas frestas do telhado sem forro. Talvez o pássaro ouvisse música e atentaria para algum baile. Belas damas em trajes deslumbrantes, com decotes, cores, colares de pedras preciosas e tiaras a espalharem mais e mais brilho. Cavalheiros elegantes, alguns com trajes da guarda imperial, brindavam champanhe em talhadas taças de cristal.
Uma orquestra entoava os sucessos de época vindos da corte.
Abaixo, na entrada hoje calçada, carruagens e belos cavalos eram dispostos espalhados pelo encantado jardim.
Seriam estas as lembranças do tucano? O que sentia bela e pobre criatura em suas visitas diárias?
O escurecer vem do Itacolomy, desce as encostas da serra e lança-se pelo campo. Muda, abraça as primeiras casas da cidade, corre suas ruas, becos e vielas, envolvendo pessoas e animais. Envolve a vida. O tucano mesmo de costas, parece perceber o chegar frio da sombra. Sem soltar som que seja, se lança do parapeito de ferro. Ninguém sabe seu destino. Certo mesmo é que amanhã estará novamente naquela janela, revivendo novos bailes, novas músicas, preciosas lembranças. Amanhã.
Publicado em Jornal Diário de Uberlândia em 11 de novembro de 2018
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