Dedicado a Públio M15
Vila miúda. De um lado descampado de pasto a perder de vista, aqui e ali uma mancha de matinha a preservar nascentes. Perigoso de banhar, território de bichos de querer longe. Sem mais ter para onde ir, habitavam terra e copa de árvores. Bichos peçonhentos que nem gente humana. Cobra rasteira aprendeu escalar tudo no rastro de ninho de passarinho. No chão, contam, até pisada de onça grande no barro beira córrego eram avistadas.
Pra toda banda aranhas de todo feitio, cor e tamanho. Veneno, muito veneno. Passarinhada fazia ninhal, pois fruta do mato e até de quintal tinha muita. Sementes levadas por morcegos e outros bichos. Festa só. Não havia menino que não cobiçasse as mangas enormes em amarelo/vermelho/roxo, as goiabas de tamanho assim, jambos carnudos, pitangas e amoras maiores do que o ovos de garnisé vindas lá de Guernsey, longe canal da mancha e soltas aqui, agora cantavam em português fluente.
Abelhas zumbiam em trabalho sem parar e, cada oco, pequeno que fosse, era rico em mel de favo. Das miudinhas sempre fartura: Jataí-itajaó, Inhanti, Lambe-suor, Marmelada, Moça branca, Mané-de-abreu, Arapuá, Abelha Cachorro, Tataira, Caga fogo, Mirim Preguiça. Eram tantas tribos, que se tornava difícil contar. Cada um dava um nome.
Orquídeas de pouco ver enfeitavam o tudo. Contam que gringo foi lá, retratista de natureza, visitou as ilhas verdes do demeio do pasto, voltou mais nunca. Veio até avião da capital com gente de busca, mateiros da região de experiência seguiram junto, cães de farejo agudo, mas nada se achou. Nunca.
Alguns contam que foi vingança das manchas, pois queriam não era retrato, era levar para longe nossas riquezas frágeis. Paraíso perigoso. Tinha o doce, tinha o ardume, arrastando, beirando cada pau caído, o susto e a morte. Melhor não ir. Deixar quieto as manchas fervendo vida, prudência. Beleza não era para ser vivente que de lá não fosse. Contar de lá era o que ficava. E disso a vila era sábia.
Se de um lado era pasto, virando para o poente era parte areia e findava no mar. O sustento de quase todos vinha da pesca. Um dia o lugarejo fora beira-mar, mas vento veio carregando toda areia das praias nossas e até da África. Vinha em tempestade. Açoite no corpo e na alma. Casas foram recuando, recuando, recuando. Por tantas vezes povoado se afastou do mar que pouco se via. O vento deu sossego, mas caminho ficou longe. Assim o andar da porta de casa até o barco amarrado na areia beirando mar, transformou-se no dia a dia das gentes daquele lugar.
Não demorou turista descobrir o recanto. Avisados do que havia do lado de lá, nem se aventuravam no medo. Armavam barracas na praia sob sombra de belas e viçosas castanheiras. Pequenos comércios de peixe, camarão, lagosta, moquecas, siris e seus parentes guaiamus, rendiam bom sustento nos meses de férias. Depois disto, era solidão mansa, silêncio frio de paz.
Morador por nome eu não sei, mas apelidado de Xaréu, por conta de uma história de um desses de mais de seis quilos que diz ter fisgado, mas que na hora de embarcar rabiou e fugiu água a fundo, era com frequência questionado. — Xareú de seis quilos? Conte outra! E era risada que só. Manso, da paz, mas sistemático, nunca ligava. Restava saber se verdade era, mas que Xareú ficou assim apelidado, isso ficou.
No verão dos turistas Xareú inventou e montou barraca de pau e folha de sapé a vender café, leite morno, rosca, pão e biscoitos fritos pela mulher, para os famintos da cidade.
Contei, era sistemático e teimoso. Tinha sistema. Manhã azul/férias. Chega turista branquelo leite, todo cor da bunda.
— Bom dia!
— Dia!
— Queria um café com leite e uma rosca com manteiga.
— O café com leite eu vendo, rosca também, mas manteiga só no pão. Aqui não se come rosca com manteiga. Onde já se viu fato assim? Resmungou perdendo o humor.
— Moço, mas eu vou pagar. É só passar a manteiga na rosca e pronto! Retrucou o turista.
— Aqui não! Se quiser manteiga é só no pão, na rosca nunca, vendo não.
— Tá certo. Mas o senhor vende a manteiga por pacote ou quilo? Pode ser?
Abriu sorriso, ia dar negócio. — Aí eu vendo.
— Então me vê quatro roscas e um tablete de manteiga.
Xareú feliz a embrulhar as roscas, primeira venda do dia. Prometia.
Deu estalo em Xareú. Parou, desritmou o empacotar. Olhou para o teto de sapé por onde entravam tímidos raios de sol. Um deles acertou em cheio seu olho, piscou forte no desviar.
— Não, vou vender mais não! Enrugando a testa.
— Mas por que santo homem? Eu vou levar daqui!
— Acha que sou bobo? Você vai é passar manteiga nas roscas! Aqui não violão! Manteiga só no pão!
E lá se foi um irritado visitante a pisar firme na areia.
Eita! Povo da cidade esquisito, irrita atoinha que só!
Veterinário e escritor
Publicado em Diário de Uberlândia em 27 de janeiro de 2019