Abriu a boca em bocejo de engolir o mundo. Acordou tarde, havia passado quase toda a noite a campear comida. Tinha revirado latas de lixo e terrenos baldios, onde a estupidez humana ficava escancarada, diante das montanhas de sobras que ali jogavam com vontade. Um dia quase tomou saco repleto de tranqueiras na cabeça, lançado sem a menor cerimônia por cima de um muro.
Desconfiava que, se eles não viam o lixo este deixava de ser problema deles. Assim, era mais fácil jogá-lo de lá do muro, não lhes dando atenção. Tipo o ditado mais dito no mundo: "o que os olhos não vêem o coração não sente". Vai nessa toada para você ver onde vai parar, digo eu.
Quanta tarouquice desse povo. Mal sabiam que ali se criavam ratarias gigantescas, que esperavam ansiosamente o momento de entrar nas casas dos parvos que os alimentavam sem saber, a espalhar doenças e destruição. Como disse o escorpião de Esopo, dando de ombros antes de se afogar, é a natureza deles.
Evitava tais territórios por dois motivos: a concorrência era grande e os restos ali atirados eram sempre de péssima qualidade.
A humanidade pronta a submergir por escolha e atitudes próprias.
Deu-se conta de que seu corpo doía todo. Talvez a posição de dormir. Ademais, o sereno da madrugada não tinha secado de todo e o sol ainda estava longe, no risco do horizonte. Deu uma chacoalhada e seguiu caminho. A fome o empurrava. Outra lata de lixo, um saco a rasgar e fuçar, à cata de algo que lhe abrandasse um pouco o incômodo. Sabia que a hora não era das melhores, mas como a penumbra não havia rendido nada tinha que se arriscar às claras.
Não demorou muito a ser xingado por um que vinha e quase levou um pontapé. Sentiu o vento do chute, mas esquivou-se como deu. Quanto mau humor matinal. Pensando nas contas a pagar? Gastou mais do que podia nas festas? Nesta época sempre encontrava nos sacos das sobras, recibos vencidos, IPTU, IPVA, imposto de renda, contas de lojas e vendas. Comprar é fácil, pagar, sacrifício. Como essa gente gosta de posar de importante. Gastam sem poder e vivem duras penam para pagar, quando é que pagam. Uma roda viva de sofrimento desnecessária. Basta pôr freio. Ele não devia um tostão. Também, não tinha nada, não carregava o peso de excessos. Vivia das sobras e lhe bastava.
Nesse meio pensar, um cachorro saiu em disparada a latir em sua direção. Não dava para fugir. Parou encarando o bicho. Olho no olho. O cão ladrava em fúria, espumava pelos cantos da boca, olhos vermelhos de um ódio instintivo. Não atacava. Latiu até ficar rouco. O olhar e a falta de medo foram decisivos para evitar confronto. Ainda latindo, pêlos em pé da nuca ao cavador do rabo, o cão foi devagarzinho se afastando. Virava quando em vez e ainda dava com seus olhos nele fixos. Saiu resmungando. Logo achou um bicicleteiro para aporrinhar.
Imóvel, coração ainda aos pulos de um medo que conseguiu não demonstrar, músculos tesos, respirou fundo e foi relaxando aos poucos. Agora não sabia o que doía mais. Fome ou corpo?
Achou melhor parar um pouco. Jogou-se em um beco aparentemente seguro. De uma calha lá no fundo corria uma água. A sede provocada pelo encontro com a fera lhe havia secado por inteiro. Sem cerimônia bebeu com avidez. Sentiu gosto de sabão de bola, mas nem isso o impediu. Bebeu como se fosse água do mais límpido riacho de mata fechada, vindo de cachoeira iluminada por sol da manhã. Fechou os olhos e ouviu o canto de passarinhos de todas as cores. Uma borboleta pousou em seu nariz.
Abriu os olhos e o que viu foi uma horrenda varejeira lhe beliscar as ventas. Com tapa a expulsou de seu breve sonho.
Tentar levantar ligeiro lhe repuxou a espinhela. Sem pressa, arqueado, se enrolou como pode. Tinha que descansar. Um ronco oco se fez ouvir em seu estômago. Não aguentava mais. Voltou ao sonho, ao riacho, se banhou nos respingos fortes da queda d'água, rolou na grama macia e manso subiu em árvore linda, de onde se via o fim do mundo em verde e montanhas. Nada disso existia mais. Só roça gigante, um deserto verde baixo sem vida para ele e para todos outros que ali moravam. Migrou forçado para a cidade, virou mendigo da natureza. Ali onde raras árvores existiam, tentava sustento. Seu alimento principal eram as lembranças, a fartura, a paz perdida.
Vida de gambá na cidade era dura e arriscada, mas tinha que sobreviver. Não havia lugar para fugir, mas algo lhe empurrava sempre - dia há de vir, as florestas voltarão a reinar. Dormiu exausto.
William H Stutz
Veterinário e escritor
Publicado em Diário de Uberlândia em 14 de Janeiro de 2019
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