"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
quinta-feira, maio 9
Piri piri piri!!!!! Ratatatata!!!!
Uma onda branca toma conta da Ponte Seca. A concentração atrai a atenção de turistas e nativos. Apesar de acostumados com essa invasão, que já dura 47 anos, é impossível passar sem parar para dar uma espiadinha, que carece de horas, pois encanta. Sempre dá uma pontinha de inveja de não estar ali no meio de tanta gente alegre. Velhos, moços, idosas, lindas meninas. Impressiona a seriedade de todos. Cada um sabe seu papel, seu lugar, sua nota. Aos poucos se vai colocando certa ordem na confusão séria, mas alegre e emanando alegria contagiante. O comandante com sua jaqueta azul, botões dourados e calça de linho de um branco impecável, pede silêncio. A ordem custa a correr as colunas e a falação não pára. De mão em mão alguns carotes de boa cachaça circulam faceiras. Latas e mais latas de cerveja, embalam o clima.
Depois de berros e mais gritos, o comandante consegue algum silêncio. Reza a cartilha para os novatos. Pede minuto de silêncio para antigo membro que deixou saudades, partiu para as estrelas. Lembra solene as vítimas de Brumadinho e Mariana. Neste minuto o silêncio é total. Canta bem-ti-vi em árvore bem próxima. Lágrimas brotam em rostos rudes, queimados de sol pela lida. As gotas seguem caminhos entre profundas rugas, escavadas pela erosão do tempo. Perdeu alguém muito amado para a lama criminosa da Vale. Passa ligeiro a manga da camisa, sussura: − Sai tristeza. Essa tarde é para você que nos deixou em tragédia.
Pessoal do sopro vai na fente, percussão ao fundo. Põe-se em marcha e logo imensa serpente branca toma conta das ruas: O sopro, Piri piripiripiri!!!!! Percussão, ratatatata!!!! Piri piripiri piri, ratatatata!!!! A serpente branca sobe a rua Antônio de Albuquerque até a Igreja do Pilar, contorna a Praia do Circo e rapidamente chega ao Largo do Rosário. A linda Igreja dos pretos parece aprumar suas torres barrocas, para agradecer a homenagem a receber. Ali todos ficam de frente para ela e o refrão soa mais alto, repicando em casas coloridas, janelas repletas de gente alegre. Piri piripiri piri!!!!! Ratatatata!!!! Piri piripiri piri!!!! Ratatatata!!!!
Segue rumo ao Largo da Alegria. Ali em ligeira e suave curva à esquerda, avança pela Rua São José. Aplausos, gritos e dança. Puxa centenas de pessoas com sua força.
No Largo do cinema, apenas o nome permanece. O cinema se foi para sempre. Só lembranças. Também, Manteiga o pipoqueiro, tratou de buscar estourar seu milho bem longe lá, no alto para onde vão as boas pessoas. As ladeiras vão se tornando mais íngremes. Não, não precisam de cordão de isolamento ou segurança. As cabeças brancas de verdade impõem respeito e a rua se abre em passarela. Sobe-se a rua Direita. Piri piripiri piri!!!!! Ratatatata!!!!!!!!! Ratatatata!!!! O suor cola camisas de algodão, mas nada que atrapalhe a marcha. Lá no alto a Praça Tiradentes lotada a esperar. O som já avisa que estão chegando. Apoteose! Rompe-se praça adentro sob aplausos. Banhos de confete, serpentina e espuma colorida. Há sempre uma mão na multidão a estender uma cerveja, uma garrafa de água gelada. Jogam-se beijos que, como borboletas parecem pousar em cada rosto. Sopro Piri piripiri piri!!!!! Percussão, ratatatata!!!! Contorna-se a praça, passando primeiro pelo palco erguido bem em frente ao Museu da Inconfidêndia, circula a estátua de nosso herói maior, marcha cadenciada pela Escola de Minas. Outra volta e desce a Rua do Ouvidor, rumo ao Largo de Marília, já na Antônio Dias. Se você olhar à sua direita no Largo de Coimbra, vê a belíssima Igreja de São Franciso. Mandarim a lhe sorrir. Depois, parada geral para recompor as energias. Leia-se xixi, mais pinga e cerveja à vontade. Estão todos enxarcados, mas apenas cansados. Aproveito e descanço, descrevo os trajes. Tem que ser impecável e, na falta de algum item, corre-se o risco de não poder participar.
A calça obrigatoriamente preta, assim como o sapato, gravata e meias. Camisa branca social para fora e o cinto abraçando a camisa. No cinto um rolo de papel higiênico. Na cabeça, um pinico branco esmaltado. Se for a primeira vez que vai sair, este pinico será batizado. Não com o que normalmente se coloca dentro dele, como na cabeça de muitos que se dizem poderosos que aí estão. Nada de merda. O batismo é jogar o dito no meio da turma, onde é chutado, amassado em calçamento de pedras seculares, que ainda trazem o pisar de cavalos, de portugueses, escravos e artistas eternos. Assim lhe é devolvido já com a tarja oficial. Agora, você iniciante, faz parte de uma ordem desordenada e prestigiada. Você ostenta o título de membro da maravilhosa, tradicional e mágica BANDALHEIRA.
Sopros, Piri piripiri piri!!!!! Percussão, ratatatata!!!! Piri piripiri piri!!!!! Percussão, ratatatata!!!! Saiu uma vez, vai viajar dias para sair novamente! Viva a Bandalheira! Viva o carnaval de Ouro Preto!
Diário de Uberlândia em 17 de março de 2019
Bicharada II
Aluga-se lindo imóvel. Vende-se ou aluga. Tratar direto com proprietário. Essa foi minha vida por bom tempo. Podia identificar um imóvel apenas pelas letras e cores das placas. Só relembrando meu périplo contado outro dia. Deu no que deu. Achei uma casa minúscula, unha de dedinho, fria e sem vida que, como já contei, tratei de lhe dar jeito de lar. Pode parecer mentira, mas hoje já a acho grande demais, menos o quase zero quintal, que é o "coração das pessoas". Não é Bituca? Esse poderia ser bem maior.
Parei meu contar na semana passada no miado do gato, que acabou ficando e me adotou de fato. Durou pouco nosso convívio. Gente do mal o querendo fora do condomínio. Pela mansidão e inocência de filhote, entrava em casa de gente ruim sem alma. "Quem não gosta de bicho dificilmente vai gostar de gente". Vi na prática. Certo, passei o gatinho para uma amiga especial. Lá cresce livre, leve, solto e muito feliz e eu ainda tenho a oportunidade de visitá-lo sempre. De lá para cá, se foram riscos no calendário, marcadores de nossa vida ao passar.
Perdi a esperança de voltar a ter companhia animal, a melhor de todas. Comecei a pensar que essa dádiva não me seria concedida. Ledo engano. O destino me reservava boas surpresas. E não é que em tranquilo fim de semana, me aparece outro gato! Este erado e bem desconfiado. Gato de rua, certamente tinha sofrido um bocado em mãos de humanos. Chegou como quem não queria nada, entrou, roçou pescoço pelos pés de bancos e tamboretes. O olhar sempre firme em mim, como a esperar um grito ou um chute. Neste dia não deixou nem passar a mão em sua cabeça, arredio que era. Ainda tinha resto da ração do que foi expulso do condomínio. Servi um tanto. Ele comeu ávido e ligeiro, como se estivesse saindo de um campo de concentração. Raro em gatos. Logo conto. Com os dias, já subia no sofá, onde passava a tarde toda dormindo. Baixou a guarda. Dormia de pernas para cima. Em posição totalmente vulnerável, aceitava carícias e já pedia comida aos mios. Ronronava tranquilo ao meu lado. Não deixava que ele ficasse só dentro de casa. Fiz macia cama na varandinha do cafofo - no dizer de pessoa querida, mas que não quis mais de mim. Ali ficava até eu chegar. Porém, o destino nos reserva boas surpresas. E não há de ver que ao chegar de um dia especial, escuto outro miado à minha porta? Pensei comigo que não poderia ser o Chaninho. Velho como era, só se engasgado estivesse. Ligeiro desci a abrir a porta e dou com o quê? Gatinha filhote, do pelo feio de cor e sem brilho. Ela não teve cerimônia. Na inocência dos pequenos já foi entrando, roçando na minha perna aos ronronares de frio e fome. Peguei no colo, olhou-me fundo e triste. Dia seguinte, castrada, vacinada, deslumbrigada, ganhou casa, comida e dono. Pretensão ser dono de gato. Eles nos escolhem, eles sãos donos, nós os seus animais de estimação. Ganhou nome de Princesa. Faz literalmente gato e sapato do velho Chaninho que, por vez, perde a paciência e ralha forte com ela. Mas a rotina é assim. Onde um está, está a outra, que vem ligeiro. Toma a ração dele, mordisca o rabo, mas no fim acabam os dois dormindo o dia inteiro na caixa da varandinha. Depois, somem no negrume da noite para fazerem sabe-se lá o que.
Ração, como já disse, só Premium.Vai ficando caro, quase o preço de minha marmita. E olha que essa dá para almoço e janta.
O pior, como sabem, é que gato come devagar, mordisca e larga o resto ali para outra hora. Por menos que se coloque, sempre sobra e muito. Deu no esperado. Aquele restinho de ração começou a cevar casal de gambás que, na maior tranquilidade, da goiabeira passavam para o tronco de minha amoreira e desciam em rota segura bem à frente de minha janela. Ainda tratavam de dar um sorriso calmo para nós e seguiam para os comedouros, onde se banqueteavam com as sobras dos gatos. Assim estava difícil. Tratar gambá a ração especial é osso.
Resolvi fazer sérias mudanças. Contenção de despesas moaçada! De agora em diante ração a granel! Com um quilo da outra comprava cinco desta.
A resposta veio no primeiro dia que a servi. Os gatos vieram em rodeios e miados, chegaram com a costumeira fome de mordiscos, cheiraram uma vez, olharam em sincronia para mim. Cheiraram outra vez, levantaram as cabeças juntinhos, firmaram as vistas como a me dizerem: — Ô cara, que que isso? Baixou o nível? Perdeu o emprego? Sem essa, pode parar, cadê nosso comer de verdade! Isso? Queremos não!
Pensei, deixa a fome apertar que logo vêm comer. Deu certo não. Jejum de dias. E olha que eu tirava a ração e só colocava no dia seguinte.
Certa noite coloquei a ração e esqueci de tirá-la. Estava a ler bom livro, quando vi de canto de olho os gambás descerem tranquilos. Bom, pelo menos estes comem e ficam numa boa.
Que o quê! Não passaram cinco minutos e os dois filões foram na carreira árvore acima. Parece que ouvi um resmungo do tipo:
— Quem esse cara pensa que somos? Somos gambás de respeito e estirpe nobre! Acha que vamos comer sobras? Assim tá é doido!
Nenhum sorriso me deram. Passaram-se cinco dias de greve geral felina e didelphiana. Sem negociação, sem carinhos e companhia. Dei-me por vencido. Voltei a oferecer ração dentro dos "requerimentos nutricionais mínimos estabelecidos pelo Conselho de Nutrição Animal do NRC (National Research Council)" e recomedados pela AAFCO (Association of American Feed Control Official). Bicho sindicalizado e organizado tem meu respeito e eu sou péssimo negociador. Gatos e gambás unidos jamais serão vencidos.
Publicado em Diário de Uberlândia em 10 de março de 2019
Bicharada I
Já faz um tempo. Depois de uma relação de três décadas, esta chegou ao fim, como acontece com quase tudo em minha vida. Não, não estou a me queixar, nem me colocando em posição de vítma. O mestre Vinicius tinha toda razão: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”. Assim foi. Não é o caso de expor minha intimidade e tais, mas a verdade é que fiquei sem chão, sem céu, sem rumo. Estranho seria se não ficasse. Recomeçar é sempre difícil, doído, mas ao mesmo tempo é como novo nascer. É chance de fazer uma avaliação do caos interno e jurar nunca mais repetir erros do passado. A verdade é que não é fácil, principalmente quando se vive a segunda juventude ou a “envelhescência”. Os sonhos sonhados derretem como degelo glacial sob efeito de mudanças climáticas, e olha, tem gente que não acredita no aquecimento global. Coisa de comunista. Passado o impacto você começa a pensar se realmente compartilhava sonhos ou os vivia sozinho em uma clausura mental, fantasiosa. É impactante.
Além do chão e coisas mais, tem o hábito. Este é custoso. As manias, o jardim a cuidar, os passarinhos que lhe são tão familiares, quase já comendo em sua mão. Não se despede apenas de gente humana. Despede-se de móveis, cheiros, plantas, bichos, rituais do coditiano, o dormir na rede, a feijoada no fogão do quintal e dos morcegos amigos sempre em disputa pelas belas jabuticabas. Enfim, chega de lamúrias. O cantar de Chico já se foi e não existe mais, virou pó: “Se me faltares, nem por isso eu morro / Se é pra morrer, quero morrer contigo (…)” Que nada, viver é preciso, ser feliz mais ainda.
O mais importante e única coisa que agora faz sentido são os filhos. Estes, amores eternos, sinceros, maravilhosos. E gratidão por tê-los tido, uma amizade fraterna sem ranços, gritos de gansos, apenas o manso.
Ah, Leminsky “Viver é super difícil/ o mais fundo/ está sempre na superfície.” Introito feito, vida maravilhosa que segue.
Depois de muito procurar, achei pouso para alugar. Não que fosse difícil, pelo contrário, nunca tinha passado por minha cabeça a infinidade de casas e apartamentos que aqui existentes. Imagino que, se todos os imóveis estivessem ocupados a população de nossa cidade triplicaria. O complicado foi encontrar morada do agrado. Acostumado com a vastidão de quintais e ruas calmas, arborizadas, fica complicado não comparar.
Achei enfim algo nem perto do que buscava, mas meio longe do que não queria. Minúscula casa, com quintal menor ainda, nua de plantas. Sem alma ou brilho. Mas era ali. Tratei de fazer dali um canto agradável. Plantei árvores e o fiz verde. Defendi com ferocidade jurídica um lindo pé de goiaba. Hoje, sua sombra e frutos são a alegria de centenas de passarinhos, maritacas, sanhaços, pássaros-pretos, cambaxirras e seu gorgeios que nos levam a viagens no tempo. Uma festa do amanhecer ao fim de tarde.
Do quintal de cimento quente, brotou horta em vasos. Alfaces, tomates, almerões de várias espécies, temperos exóticos, flores coméstíveis, além das básicas salsa e cebolinha. Morangos, pitangas, romãs e também laranjas Kinkan (laranja fruta, que fique bem entendido). As plantas cresceram tanto que a casinha ficou agradavelmente fresca e acolhedora. Certo dia duas crianças passaram à porta e apontaram para nossa entrada. Olha a casinha dos Smurfs! Quer elogio maior?
Por muito tempo minhas únicas companhias eram plantas e bichos. Fiz cevagem com quirera de milho. Virou “point” da passarada. Levantar para trabalhar cedo. Saudade desse tempo. Não do cedo, do trabalho, mas essa é outra história, guardada e pronta para contar. Levantava junto com frescor do sereno. Um mundo de cores e sons me esperava, ávido por desjejum. A passarada se misturava rapidamente com o amarelo do milho, me deixava aquietar em uma paz. Difícil descrever.
Certa feita, em um sábado bem cedinho, miaram à porta. Se já contei, reconto assim mesmo, peço desculpas, pois me perco em tantos escritos. Abri a porta intrigado. Pequeno gato preto, noite sem lua, sem estrelas, negro balandrau, me olhava pidão. Minha relação com gatos era distante. Sempre tive desconfiança deles. Criava cães de grande porte. Deixei a porta aberta, tratei da passarada no cocho e fiquei a observar. Se ele atacasse os de pena, não haveria a menor chance de mantê-lo comigo. Qual foi minha surpresa, não deu a menor para os canores do meu jardim. Neste dia, fui às compras como fazia sempre aos fins-de-semana. Morar sozinho é doido, tem que acostumar a pequenas porções. Nossa cidade não vive essa cultura. Vivia de um desperdício involuntário e isso me doía forte. Ao passar por uma gôndola colorida, avancei alguns passos, mas em ré voltei.
Comprei uma super ração premium. O gato fica. Por excesso de letras e espaços aviso: essa prosa continua.
Bom domingo.
Publicado em Diário de Uberlândia em 3 de março de 2019
Compadres
Eles eram de uma amizade e cumplicidade pouco vista. Moravam em pequena cidade em um longe, no meio do nada. Para lá chegar só estrada de chão e se formasse chuva, nem carecia sair, pois só passava de carro de boi ou trator. Essas caminhonetes de propagandas, que sobem e descem barranco, andam dentro de córrego e, em falta de educação total, correm por praias esmagando ovos de tartarugas, por lá não valiam nada, faziam fila no massapé grudento da terra de cultura.
A vila era que nem tantas que visitei e descrevi aqui mesmo neste espaço. A igreja numa ponta, lupanar na outra. Este, também chamado de zona, casa de tolerância ou puteiro. Bem que tentei ser educado. Lupanar em primeiro momento me pareceu, digamos, mais discreto, nobre. Não funciona em certas ocasiões, melhor o popular mesmo. Dois moleques a correr descalços por toda banda. Sempre juntos, pareciam irmãos bem apegados. Assim, eram amigos de cortar dedo e juntar sangue como nos filmes de faroeste. Corte no pulso não tiveram coragem. Viram corpo de Seo Sinobelino mergulhado em poça de sangue, por conta de pulsos cortados. Contam que estrebuchou que nem frango, até morrer em suspiro de arrependimento. Não teve tempo de desdizer e se foi com olhos abertos e tristes. O motivo nem se sabia direito. Não devia a ninguém, tinha sítio bem zelado, pomar farto, galinhas, patos e até um peru imenso que dizia guardar para quando casasse. O peru andava velho, com as canelas grossas e escamosas pela era. Não respondia nem a assovio. Matou-se de solidão, disse o padre na missa de corpo presente. Contrariando as leis da Santa Madre Igreja, foi enterrado em campo santo. E quem ia saber disso? Contei, ali era o fim do mundo redondo ou plano, mas era o final.
Uma gota de sangue do dedão, furado com espinho de macaúba, resolveu o problema do ritual. Irmãos de sangue se tornaram de fato e de direito.
Cresceram, namoraram, casaram e filhos tiveram. Além de amigos se tornaram compadres, pois pegaram filhos um do outro para batizarem.
Trabalhão. Um montou venda com tudo quanto há. Aquietou bem na praça, onde recebia, vendia e trocava prosa. O outro tinha alambique famoso pela delícia de sua cachaça. Fornecia ao amigo em garrafões de cinco litros. Gente andava léguas para comprar.
Punha preço que fosse, vendia tudo. Tudo não, sempre guardava uma ou duas garrafas da mais fina porção de destilar. Uma para uso próprio e dos amigos, outra selava bem com rolha e cera de abelha e enterrava bem escondida. Único que sabia dos lugares de segredo era seu compadre/irmão de sangue. Nesse podia confiar. Dizia sempre:
− Compadre, essas pingas especiais vamos tomar no casamento de nossas filhas. A primeira que casar, seja sua ou minha, nós abrimos uma por uma. Combinado?
− Certim compadre, certim! Assim será feito!
A vida pastosamente foi passando. Corria em calma e preguiça.
Num amanhecer murmurante como sempre, aquele dia abriu diferente. Ninguém sabia explicar o ar pesado, difícil de atravessar, mesmo com tanta brisa fresca. Para bom observador um notar ficava. Galo não cantou naquela madrugada, cachorrada não latiu para a lua, que se fazia cheia deixando tudo em prata. Gatos sumiram e nem miado de paixão se fez ouvir. Urutau mãe da lua se aquietou e não assustou cavalo em pasto. A Caburezinha tão chegada a quintais e praças não piou seu canto gargarejado,
O funesto estava anunciado e ninguém percebia.
Acontece que um dos compadres, não o das pingas, o da venda, tinha saído de madrugada para pescar e, como estava demorando demais a voltar, a venda não abria, criou-se desconfiança. Toca as gentes a procurar. A canoa acharam emborcada na margem do rio, do compadre nem aviso nem avisto. A procura levou semanas. Nada. Assim, foi dado como morto pelo delegado da comarca vizinha, que comandava buscas.
A tristeza tomou conta. Em luto a vila ficou por semanas a fio.
O tempo. Passaram-se anos e mais anos. E depois desse tanto, mais um muito de tempo se passou.
O fato caiu no esquecimento, ficando aceso apenas na viúva, que nunca mais se casou e só de preto se vestia, nos filhos que agora tinham netos e, claro, no peito do único amigo de verdade sobrevivente a tudo. Não abriu as pingas enterradas para casamento de filha. Esperou em paciência. Acreditava que do nada o amigo iria voltar, de meio de picada na mata.
Foi nada não. Quando inteirou trinta anos do desaparecimento, e decidido a por fim naquilo tudo, resolveu fazer baita festa em homenagem ao desaparecido. Convidou a vila toda, armou torda com mesa farta, muita comida, cerveja a ufa e, para completar, com os filhos e mapa na mão, saiu a catar as tantas garrafas de pinga enterradas.
Colocou tudo em mesa de toalha branquinha e em discurso contou a história da cachaça para todos, que agora iam em cerimônia brindar ao parceiro que se foi.
Serviram-se e após o levantar de braços deram talagada, para apreciar o gosto de pinga tão especial envelhecida por três décadas.
Depois do gole fez-se silêncio barulhento por dentro. Ninguém deu um pio. O dono da festa, de bochecha cheia, cuspiu com força a bebida, no que foi seguido por todos. O velho deu uma gargalhada tão forte que tremeu a lona. E ainda quase explodindo de tanto rir gritou para a multidão:
− Esse compadre fdp era um moleque dos infernos. E não é que nesses anos todos que lhe mostrava minhas pingas especiais ele, na calada, corria lá, bebia e colocava água no lugar! Sacanagem com trinta anos de frente!
Adiantava xingar? A festa durou a noite inteira. E o velho amigo, agarrado a uma de suas pingas de verdade, sentado em tronco beirando mato, ria e chorava. Chorava muito de saudade.
Publicado em Correio de Uberlândia em 24 de fevereiro de 2019
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