"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
quinta-feira, maio 9
Bicharada II
Aluga-se lindo imóvel. Vende-se ou aluga. Tratar direto com proprietário. Essa foi minha vida por bom tempo. Podia identificar um imóvel apenas pelas letras e cores das placas. Só relembrando meu périplo contado outro dia. Deu no que deu. Achei uma casa minúscula, unha de dedinho, fria e sem vida que, como já contei, tratei de lhe dar jeito de lar. Pode parecer mentira, mas hoje já a acho grande demais, menos o quase zero quintal, que é o "coração das pessoas". Não é Bituca? Esse poderia ser bem maior.
Parei meu contar na semana passada no miado do gato, que acabou ficando e me adotou de fato. Durou pouco nosso convívio. Gente do mal o querendo fora do condomínio. Pela mansidão e inocência de filhote, entrava em casa de gente ruim sem alma. "Quem não gosta de bicho dificilmente vai gostar de gente". Vi na prática. Certo, passei o gatinho para uma amiga especial. Lá cresce livre, leve, solto e muito feliz e eu ainda tenho a oportunidade de visitá-lo sempre. De lá para cá, se foram riscos no calendário, marcadores de nossa vida ao passar.
Perdi a esperança de voltar a ter companhia animal, a melhor de todas. Comecei a pensar que essa dádiva não me seria concedida. Ledo engano. O destino me reservava boas surpresas. E não é que em tranquilo fim de semana, me aparece outro gato! Este erado e bem desconfiado. Gato de rua, certamente tinha sofrido um bocado em mãos de humanos. Chegou como quem não queria nada, entrou, roçou pescoço pelos pés de bancos e tamboretes. O olhar sempre firme em mim, como a esperar um grito ou um chute. Neste dia não deixou nem passar a mão em sua cabeça, arredio que era. Ainda tinha resto da ração do que foi expulso do condomínio. Servi um tanto. Ele comeu ávido e ligeiro, como se estivesse saindo de um campo de concentração. Raro em gatos. Logo conto. Com os dias, já subia no sofá, onde passava a tarde toda dormindo. Baixou a guarda. Dormia de pernas para cima. Em posição totalmente vulnerável, aceitava carícias e já pedia comida aos mios. Ronronava tranquilo ao meu lado. Não deixava que ele ficasse só dentro de casa. Fiz macia cama na varandinha do cafofo - no dizer de pessoa querida, mas que não quis mais de mim. Ali ficava até eu chegar. Porém, o destino nos reserva boas surpresas. E não há de ver que ao chegar de um dia especial, escuto outro miado à minha porta? Pensei comigo que não poderia ser o Chaninho. Velho como era, só se engasgado estivesse. Ligeiro desci a abrir a porta e dou com o quê? Gatinha filhote, do pelo feio de cor e sem brilho. Ela não teve cerimônia. Na inocência dos pequenos já foi entrando, roçando na minha perna aos ronronares de frio e fome. Peguei no colo, olhou-me fundo e triste. Dia seguinte, castrada, vacinada, deslumbrigada, ganhou casa, comida e dono. Pretensão ser dono de gato. Eles nos escolhem, eles sãos donos, nós os seus animais de estimação. Ganhou nome de Princesa. Faz literalmente gato e sapato do velho Chaninho que, por vez, perde a paciência e ralha forte com ela. Mas a rotina é assim. Onde um está, está a outra, que vem ligeiro. Toma a ração dele, mordisca o rabo, mas no fim acabam os dois dormindo o dia inteiro na caixa da varandinha. Depois, somem no negrume da noite para fazerem sabe-se lá o que.
Ração, como já disse, só Premium.Vai ficando caro, quase o preço de minha marmita. E olha que essa dá para almoço e janta.
O pior, como sabem, é que gato come devagar, mordisca e larga o resto ali para outra hora. Por menos que se coloque, sempre sobra e muito. Deu no esperado. Aquele restinho de ração começou a cevar casal de gambás que, na maior tranquilidade, da goiabeira passavam para o tronco de minha amoreira e desciam em rota segura bem à frente de minha janela. Ainda tratavam de dar um sorriso calmo para nós e seguiam para os comedouros, onde se banqueteavam com as sobras dos gatos. Assim estava difícil. Tratar gambá a ração especial é osso.
Resolvi fazer sérias mudanças. Contenção de despesas moaçada! De agora em diante ração a granel! Com um quilo da outra comprava cinco desta.
A resposta veio no primeiro dia que a servi. Os gatos vieram em rodeios e miados, chegaram com a costumeira fome de mordiscos, cheiraram uma vez, olharam em sincronia para mim. Cheiraram outra vez, levantaram as cabeças juntinhos, firmaram as vistas como a me dizerem: — Ô cara, que que isso? Baixou o nível? Perdeu o emprego? Sem essa, pode parar, cadê nosso comer de verdade! Isso? Queremos não!
Pensei, deixa a fome apertar que logo vêm comer. Deu certo não. Jejum de dias. E olha que eu tirava a ração e só colocava no dia seguinte.
Certa noite coloquei a ração e esqueci de tirá-la. Estava a ler bom livro, quando vi de canto de olho os gambás descerem tranquilos. Bom, pelo menos estes comem e ficam numa boa.
Que o quê! Não passaram cinco minutos e os dois filões foram na carreira árvore acima. Parece que ouvi um resmungo do tipo:
— Quem esse cara pensa que somos? Somos gambás de respeito e estirpe nobre! Acha que vamos comer sobras? Assim tá é doido!
Nenhum sorriso me deram. Passaram-se cinco dias de greve geral felina e didelphiana. Sem negociação, sem carinhos e companhia. Dei-me por vencido. Voltei a oferecer ração dentro dos "requerimentos nutricionais mínimos estabelecidos pelo Conselho de Nutrição Animal do NRC (National Research Council)" e recomedados pela AAFCO (Association of American Feed Control Official). Bicho sindicalizado e organizado tem meu respeito e eu sou péssimo negociador. Gatos e gambás unidos jamais serão vencidos.
Publicado em Diário de Uberlândia em 10 de março de 2019
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário