quinta-feira, maio 9

Bicharada I



Já faz um tempo. Depois de uma relação de três décadas, esta chegou ao fim, como acontece com quase tudo em minha vida. Não, não estou a me queixar, nem me colocando em posição de vítma. O mestre Vinicius tinha toda razão: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”. Assim foi. Não é o caso de expor minha intimidade e tais, mas a verdade é que fiquei sem chão, sem céu, sem rumo. Estranho seria se não ficasse. Recomeçar é sempre difícil, doído, mas ao mesmo tempo é como novo nascer. É chance de fazer uma avaliação do caos interno e jurar nunca mais repetir erros do passado. A verdade é que não é fácil, principalmente quando se vive a segunda juventude ou a “envelhescência”. Os sonhos sonhados derretem como degelo glacial sob efeito de mudanças climáticas, e olha, tem gente que não acredita no aquecimento global. Coisa de comunista. Passado o impacto você começa a pensar se realmente compartilhava sonhos ou os vivia sozinho em uma clausura mental, fantasiosa. É impactante.

Além do chão e coisas mais, tem o hábito. Este é custoso. As manias, o jardim a cuidar, os passarinhos que lhe são tão familiares, quase já comendo em sua mão. Não se despede apenas de gente humana. Despede-se de móveis, cheiros, plantas, bichos, rituais do coditiano, o dormir na rede, a feijoada no fogão do quintal e dos morcegos amigos sempre em disputa pelas belas jabuticabas. Enfim, chega de lamúrias. O cantar de Chico já se foi e não existe mais, virou pó: “Se me faltares, nem por isso eu morro / Se é pra morrer, quero morrer contigo (…)” Que nada, viver é preciso, ser feliz mais ainda.

O mais importante e única coisa que agora faz sentido são os filhos. Estes, amores eternos, sinceros, maravilhosos. E gratidão por tê-los tido, uma amizade fraterna sem ranços, gritos de gansos, apenas o manso.

Ah, Leminsky “Viver é super difícil/ o mais fundo/ está sempre na superfície.” Introito feito, vida maravilhosa que segue.

Depois de muito procurar, achei pouso para alugar. Não que fosse difícil, pelo contrário, nunca tinha passado por minha cabeça a infinidade de casas e apartamentos que aqui existentes. Imagino que, se todos os imóveis estivessem ocupados a população de nossa cidade triplicaria. O complicado foi encontrar morada do agrado. Acostumado com a vastidão de quintais e ruas calmas, arborizadas, fica complicado não comparar.

Achei enfim algo nem perto do que buscava, mas meio longe do que não queria. Minúscula casa, com quintal menor ainda, nua de plantas. Sem alma ou brilho. Mas era ali. Tratei de fazer dali um canto agradável. Plantei árvores e o fiz verde. Defendi com ferocidade jurídica um lindo pé de goiaba. Hoje, sua sombra e frutos são a alegria de centenas de passarinhos, maritacas, sanhaços, pássaros-pretos, cambaxirras e seu gorgeios que nos levam a viagens no tempo. Uma festa do amanhecer ao fim de tarde.

Do quintal de cimento quente, brotou horta em vasos. Alfaces, tomates, almerões de várias espécies, temperos exóticos, flores coméstíveis, além das básicas salsa e cebolinha. Morangos, pitangas, romãs e também laranjas Kinkan (laranja fruta, que fique bem entendido). As plantas cresceram tanto que a casinha ficou agradavelmente fresca e acolhedora. Certo dia duas crianças passaram à porta e apontaram para nossa entrada. Olha a casinha dos Smurfs! Quer elogio maior?

Por muito tempo minhas únicas companhias eram plantas e bichos. Fiz cevagem com quirera de milho. Virou “point” da passarada. Levantar para trabalhar cedo. Saudade desse tempo. Não do cedo, do trabalho, mas essa é outra história, guardada e pronta para contar. Levantava junto com frescor do sereno. Um mundo de cores e sons me esperava, ávido por desjejum. A passarada se misturava rapidamente com o amarelo do milho, me deixava aquietar em uma paz. Difícil descrever.

Certa feita, em um sábado bem cedinho, miaram à porta. Se já contei, reconto assim mesmo, peço desculpas, pois me perco em tantos escritos. Abri a porta intrigado. Pequeno gato preto, noite sem lua, sem estrelas, negro balandrau, me olhava pidão. Minha relação com gatos era distante. Sempre tive desconfiança deles. Criava cães de grande porte. Deixei a porta aberta, tratei da passarada no cocho e fiquei a observar. Se ele atacasse os de pena, não haveria a menor chance de mantê-lo comigo. Qual foi minha surpresa, não deu a menor para os canores do meu jardim. Neste dia, fui às compras como fazia sempre aos fins-de-semana. Morar sozinho é doido, tem que acostumar a pequenas porções. Nossa cidade não vive essa cultura. Vivia de um desperdício involuntário e isso me doía forte. Ao passar por uma gôndola colorida, avancei alguns passos, mas em ré voltei.
Comprei uma super ração premium. O gato fica. Por excesso de letras e espaços aviso: essa prosa continua.

Bom domingo.






Publicado em Diário de Uberlândia em 3 de março de 2019

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