Esta não é uma crônica política nem ideológica. Ė uma constatação nefasta.
A vida vai levando nossas emoções, paciência, tolerância e mais algumas coisas em banho-maria, em quentura de fogo baixinho. Braseiro de fogão de lenha em amanhecer. Parece só cinza, um calorzinho vai saindo leve que nem a chapa esquenta. Mas bastam alguns gravetos, uma palha de milho e um sopro ligeiro de quem mal acordou, para que as brasas virem fogo e logo, no calor de manhã fria, água entre em fervura para café coar.
Andava eu assim, em cinza morna, observando, observando.
Quando criança, filho de oficial da marinha americana, morávamos em uma das cidades mais frias dos EUA, na divisa com o Canadá, às margens dos Grandes lagos. Próximo à nossa casa havia um pequeno pântano que, claro, éramos proibidos de cruzar, embora fosse um atalho dos bons para chegarmos à escola. Como toda criança normal seguíamos nosso irmão mais velho pelo short cut, Ele pra variar sempre nos xingava e nos ameaçava de afogamentos, areia movediça e pé-grande ferozes. E adiantavam as ameaças? Eu e minha irmã mais nova o seguíamos à distância e ele fingia não nos ver. Numa dessas consegui, à custa de uma boa surra posterior, capturar uma linda rãnzinha verde, de olhos imensos e coraçãozinho disparado na palma de minha mão.
A tunda valeu, pois minha mãe me deixou ficar com o bichinho, contanto que cuidasse dele com carinho e o soltasse junto à sua família uma semana depois. Mesmo com todo o zelo que tive dois dias depois a rãnzinha morreu. Entrei em choque devido à culpa que senti. Copiosamente chorei e fiz seu enterro em nosso jardim. Coloquei até cruzinha na sepultura, apesar de minha família judia. Foi a única cara feia que vi meu pai fazer e não era pela morte do bicho. Até hoje sonho com isso.
Por motivos de doença de meus avós maternos tivemos que voltar para o Brasil. Minha mãe era mineira de Teófilo Otoni. Como conheceu e se casou com meu pai já é outra deliciosa história. Hora conto.
Chegamos nas asas da PANAIR em um reluzente Constellation, depois de mil escalas, incluindo uma em Havana. Opa, já sei! Vão me chamar de comunista, pois pisei em solo cubano. Contudo, aviso que não almocei com Fidel. Ah, para aqueles que detestam história, a época era a do ditador sanguinário Fulgêncio Batista.
Já no Galeão, mais uma demonstração de que os bichos seriam minha vida. Enquanto todos passavam pela alfândega e migração, eu corria de um lado para outro com uma caixinha pegando moscas. Nunca tinha visto aqueles “passarinhozinhos” na vida!
Assim, fui cuidar da vida, reaprender português, criar passarinho de pena e canto, galinha e pato, como era moda entre os meninos em Belo Horizonte, onde nasci e retornava para morar. Ah, meu querido Manoel de Barros, o meu quintal era maior do que o mundo!
Possuía uma infinidade de espécies de saíras coloridas, canarinhos, bicos-de-lacre, sabiás e outras tantas espéciestodosem gaiolas.
Cuidava deles com carinho e admiração. Cores e cantos, minhas jóias. Enquanto outros meninos usavam estilingues e bodoques, eu os criava e não admitia matar bicho em meu reino/quintal.
Um domingo de brilho indescritível amanheceu naquele céu de 1965. O entorno era cinzento e negro. Meu país sofria horrores.
A criança de nada sabia. Via mas não entendia.
Domingo de luz. Tinha acabado de tratar de todos os passarinhos. Sentei-me à sombra de frondosa goiabeira, minha morada preferida em meu pequeno domínio. Ouvia meus passarinhos em canto, que soava naquele dia mas pareciam clamores de tristeza como grito de sofrimento e morte. Um estalo! Em grande gaiola coloquei quase todos juntos e com ajuda de amigo subimos até as torres da TV Itacolomy, passando pela favela do Pindura-saia.
Às minhas costas Belo Horizonte, à minha frente a mata do Jambreiro. Naquele tempo era do povo, hoje uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), de ninguém menos do que a assassina Vale. Abri as portas das gaiolas, o céu se pintou em milhões de cores e pios, o bater asas a fazer vento em rosto de menino que, sem saber motivo, chorava. Contraditoriamente, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Tinha descoberto meu fado. Cuidar de bicho e de planta, zelar pela vida por menor que fosse.
Desci a Serra do Curral correndo e chorando a rir. Sentia-me o mais feliz dos seres. Assumi essa missão, que tento a duras penas seguir. Passei décadas a defender os mais estigmatizados dos bichos, briguei por corte de árvore, plantei e vou plantar muito ainda. Salvei centenas de colméias de abelhinhas dos fornos de carvoeiras. Esparramei abelhas e sementes. Assim vou ser até o fim. Acredito nos bichos e nas plantas, em gente muito pouco.
Gente estranha II
Agora, nos últimos meses, fecho o tempo a contar, coração acelera em raiva, sangue nos olhos de tristeza e revolta.
Não dá mais. Sobre leve graveto ou palha de milho o fogo veio alto. Se não houver válvula de segurança vai explodir. Juro, nunca vi tanta besteira em tão pouco tempo. Sei que vai virar aquela polêmica chata, tipo Atlético versus Cruzeiro. Podem espernear, recitarem receitas de bolo pronto, culparem os anteriores e o escambau. Aviso que não terão resposta de minha parte. Dessa forma, podem ofender com gosto e com toda estupidez que lhes é particular. Minha intenção não é polarizar mais essa política nefasta que andamos a viver. Nada de direita versus esquerda. A discussão fica muito pequena. É reducionismo em excesso (podem chamar de circunlóquio ou até de pleonasmo, mas quem não sabe definir comunismo com imparcialidade não vai saber nem do que estou a falar). Eu não aguento mais!
O país está divido entre os defensores de Darth Vader, nascido Anakin Skywalker e o resto. Aliás, para aqueles o “resto” é comunista. Para mim nenhum conseguiu definir “comunismo” de maneira convincente e de fato nem sabem o que significa. Há também o socialista, cujos primeiros o consideram um perigo. Alimentam a ideia de que irão entrar em suas casas e “socializar” tudo que é seu. Misericórdia Divina, quanta ignorância!
Não dá mais para segurar a bronca. Entre as muitas besteiras vou naquelas que me diretamente me irritam com força, como se aquela criança lá do começo fosse atacada na alma e sóme refiro ás mais recentes, O espaço é pouco. Dá para aguentar? Logo de cara tentou-se acabar com o Ministério do Meio Ambiente, levando em conta quem lá está até que poderia se pensar nisso novamente.
Reproduzo aqui parte de texto de João Lara Mesquita de 24 de maio de 2019, publicado no Estadão sob o título “Cancun em Angra dos Reis, nova bobagem de Bolsonaro”. Disponível em https://marsemfim.com.br/cancun-em-angra-dos-reis-bolsonaro/:
“Ele está no poder há apenas cinco meses. Cinco meses de confusões, bate- cabeça entre a cúpula do governo; discursos desconexos, trocas de ministros, etc. Na área ambiental não foi diferente. Exoneração do fiscal que flagrou Bolsonaro pescando na ESEC de Tamoios; abertura da área do banco de corais Abrolhos para prospecção de petróleo; ameaças infantis de abandonar o protocolo de Paris; de transformar o MMA em apêndice do ministério da Agricultura; acusação sem provas ao Fundo Amazônia cujos parceiros estranharam; ameaças de acabar com as multas do Ibama; creditar o aquecimento global a um plano orquestrado por comunistas e mais. Não por acaso, o desmatamento na Amazônia explodiu este ano. Agora vem a estapafúrdia ideia de importar a cafonice brega, criando uma Cancun em Angra dos Reis, justamente nos 5% da baía de Angra formada pela unidade de proteção integral, ESEC de Tamoios! Simplesmente, para um site especializado em meio ambiente marinho, não há como não repercutir mais esta idiotice.”
Gonzaguinha, onde estiver: “Não dá mais prá segurar, explode coração”.
Diário de Uberlândia dias 9 e 16 de junho 2019