segunda-feira, junho 17

Gente estranha I e II





Esta não é uma crônica política nem ideológica. Ė uma constatação nefasta.

A vida vai levando nossas emoções, paciência, tolerância e mais algumas coisas em banho-maria, em quentura de fogo baixinho. Braseiro de fogão de lenha em amanhecer. Parece só cinza, um calorzinho vai saindo leve que nem a chapa esquenta. Mas bastam alguns gravetos, uma palha de milho e um sopro ligeiro de quem mal acordou, para que as brasas virem fogo e logo, no calor de manhã fria, água entre em fervura para café coar.

Andava eu assim, em cinza morna, observando, observando.

Quando criança, filho de oficial da marinha americana, morávamos em uma das cidades mais frias dos EUA, na divisa com o Canadá, às margens dos Grandes lagos. Próximo à nossa casa havia um pequeno pântano que, claro, éramos proibidos de cruzar, embora fosse um atalho dos bons para chegarmos à escola. Como toda criança normal seguíamos nosso irmão mais velho pelo short cut, Ele pra variar sempre nos xingava e nos ameaçava de afogamentos, areia movediça e pé-grande ferozes. E adiantavam as ameaças? Eu e minha irmã mais nova o seguíamos à distância e ele fingia não nos ver. Numa dessas consegui, à custa de uma boa surra posterior, capturar uma linda rãnzinha verde, de olhos imensos e coraçãozinho disparado na palma de minha mão.

A tunda valeu, pois minha mãe me deixou ficar com o bichinho, contanto que cuidasse dele com carinho e o soltasse junto à sua família uma semana depois. Mesmo com todo o zelo que tive dois dias depois a rãnzinha morreu. Entrei em choque devido à culpa que senti. Copiosamente chorei e fiz seu enterro em nosso jardim. Coloquei até cruzinha na sepultura, apesar de minha família judia. Foi a única cara feia que vi meu pai fazer e não era pela morte do bicho. Até hoje sonho com isso.

Por motivos de doença de meus avós maternos tivemos que voltar para o Brasil. Minha mãe era mineira de Teófilo Otoni. Como conheceu e se casou com meu pai já é outra deliciosa história. Hora conto.
Chegamos nas asas da PANAIR em um reluzente Constellation, depois de mil escalas, incluindo uma em Havana. Opa, já sei! Vão me chamar de comunista, pois pisei em solo cubano. Contudo, aviso que não almocei com Fidel. Ah, para aqueles que detestam história, a época era a do ditador sanguinário Fulgêncio Batista.
Já no Galeão, mais uma demonstração de que os bichos seriam minha vida. Enquanto todos passavam pela alfândega e migração, eu corria de um lado para outro com uma caixinha pegando moscas. Nunca tinha visto aqueles “passarinhozinhos” na vida!

Assim, fui cuidar da vida, reaprender português, criar passarinho de pena e canto, galinha e pato, como era moda entre os meninos em Belo Horizonte, onde nasci e retornava para morar. Ah, meu querido Manoel de Barros, o meu quintal era maior do que o mundo!
Possuía uma infinidade de espécies de saíras coloridas, canarinhos, bicos-de-lacre, sabiás e outras tantas espéciestodosem gaiolas.

Cuidava deles com carinho e admiração. Cores e cantos, minhas jóias. Enquanto outros meninos usavam estilingues e bodoques, eu os criava e não admitia matar bicho em meu reino/quintal.

Um domingo de brilho indescritível amanheceu naquele céu de 1965. O entorno era cinzento e negro. Meu país sofria horrores.
A criança de nada sabia. Via mas não entendia.

Domingo de luz. Tinha acabado de tratar de todos os passarinhos. Sentei-me à sombra de frondosa goiabeira, minha morada preferida em meu pequeno domínio. Ouvia meus passarinhos em canto, que soava naquele dia mas pareciam clamores de tristeza como grito de sofrimento e morte. Um estalo! Em grande gaiola coloquei quase todos juntos e com ajuda de amigo subimos até as torres da TV Itacolomy, passando pela favela do Pindura-saia.

Às minhas costas Belo Horizonte, à minha frente a mata do Jambreiro. Naquele tempo era do povo, hoje uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), de ninguém menos do que a assassina Vale. Abri as portas das gaiolas, o céu se pintou em milhões de cores e pios, o bater asas a fazer vento em rosto de menino que, sem saber motivo, chorava. Contraditoriamente, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Tinha descoberto meu fado. Cuidar de bicho e de planta, zelar pela vida por menor que fosse.

Desci a Serra do Curral correndo e chorando a rir. Sentia-me o mais feliz dos seres. Assumi essa missão, que tento a duras penas seguir. Passei décadas a defender os mais estigmatizados dos bichos, briguei por corte de árvore, plantei e vou plantar muito ainda. Salvei centenas de colméias de abelhinhas dos fornos de carvoeiras. Esparramei abelhas e sementes. Assim vou ser até o fim. Acredito nos bichos e nas plantas, em gente muito pouco.

Gente estranha II

Agora, nos últimos meses, fecho o tempo a contar, coração acelera em raiva, sangue nos olhos de tristeza e revolta.
Não dá mais. Sobre leve graveto ou palha de milho o fogo veio alto. Se não houver válvula de segurança vai explodir. Juro, nunca vi tanta besteira em tão pouco tempo. Sei que vai virar aquela polêmica chata, tipo Atlético versus Cruzeiro. Podem espernear, recitarem receitas de bolo pronto, culparem os anteriores e o escambau. Aviso que não terão resposta de minha parte. Dessa forma, podem ofender com gosto e com toda estupidez que lhes é particular. Minha intenção não é polarizar mais essa política nefasta que andamos a viver. Nada de direita versus esquerda. A discussão fica muito pequena. É reducionismo em excesso (podem chamar de circunlóquio ou até de pleonasmo, mas quem não sabe definir comunismo com imparcialidade não vai saber nem do que estou a falar). Eu não aguento mais!

O país está divido entre os defensores de Darth Vader, nascido Anakin Skywalker e o resto. Aliás, para aqueles o “resto” é comunista. Para mim nenhum conseguiu definir “comunismo” de maneira convincente e de fato nem sabem o que significa. Há também o socialista, cujos primeiros o consideram um perigo. Alimentam a ideia de que irão entrar em suas casas e “socializar” tudo que é seu. Misericórdia Divina, quanta ignorância!
Não dá mais para segurar a bronca. Entre as muitas besteiras vou naquelas que me diretamente me irritam com força, como se aquela criança lá do começo fosse atacada na alma e sóme refiro ás mais recentes, O espaço é pouco. Dá para aguentar? Logo de cara tentou-se acabar com o Ministério do Meio Ambiente, levando em conta quem lá está até que poderia se pensar nisso novamente.

Reproduzo aqui parte de texto de João Lara Mesquita de 24 de maio de 2019, publicado no Estadão sob o título “Cancun em Angra dos Reis, nova bobagem de Bolsonaro”. Disponível em https://marsemfim.com.br/cancun-em-angra-dos-reis-bolsonaro/:

Ele está no poder há apenas cinco meses. Cinco meses de confusões, bate- cabeça entre a cúpula do governo; discursos desconexos, trocas de ministros, etc. Na área ambiental não foi diferente. Exoneração do fiscal que flagrou Bolsonaro pescando na ESEC de Tamoios; abertura da área do banco de corais Abrolhos para prospecção de petróleo; ameaças infantis de abandonar o protocolo de Paris; de transformar o MMA em apêndice do ministério da Agricultura; acusação sem provas ao Fundo Amazônia cujos parceiros estranharam; ameaças de acabar com as multas do Ibama; creditar o aquecimento global a um plano orquestrado por comunistas e mais. Não por acaso, o desmatamento na Amazônia explodiu este ano. Agora vem a estapafúrdia ideia de importar a cafonice brega, criando uma Cancun em Angra dos Reis, justamente nos 5% da baía de Angra formada pela unidade de proteção integral, ESEC de Tamoios! Simplesmente, para um site especializado em meio ambiente marinho, não há como não repercutir mais esta idiotice.”

Gonzaguinha, onde estiver: “Não dá mais prá segurar, explode coração”.





Diário de Uberlândia dias 9 e 16 de junho 2019

terça-feira, junho 11

O trecho - outra parte



Volto às luzes. Movimento rápido outra vez, sem ser brusco voltava a sumir para agora brilhar no meio do pasto. Riscava um oito imenso e com rastro no alto céu e sumia, agora só amanhã. Hora era uma sozinha, hora eram muitas. Ficavam perto, muitas ficavam longe muito longe lá no contorno do vale. Luz de carro dizia uns – mas como se lá nem estrada tinha, nem atalho, e até hoje não tem.

Uma feita eu mais Vilson Gato – nome de batismo mesmo Gato, não era por assim chamado apelido não – coisa de Padre Dázio? Ninguém afirma – resolvemos correr atrás delas.

Brincou conosco, corremos mais de quilómetro e ela arteira na frente. Sumiu outra vez, zombeteira, já estava lá junto de Bia, e ela não via, só Vilson e eu cá de longe.

Carece sei eu de falar mais da aparência das luzes, difícil contar. Um diamante com luz dentro. Pronto descrevi, era assim. Ou quase, tem coisa sem jeito de contar, palavras faltam, estão aqui as lembranças não saem recontadas – difícil.
Tento: acende luz dentro do puro cristal, vai ver o que víamos toda noite no céu, na estrada, no pasto no mato – um brilho sem calor – suave e vivo. Era assim. Maravilhoso.

Gente estudada por lá esteve observando, vieram da capital. Aparelhamentos e muito observar. Ficaram uma semana – a luz só deu o ar da graça duas vezes – e rapidinho, acho que não gostou da cátedra – os professores se foram frustrados mas crédulos pois viram e filmaram, não contaram mais nada para nós da vila. Arrogância de doutor de papel, só, conhecedor nada da vida das gentes. Levou muito, nada, as luzes ficaram nossas.

Um dia, nem te conto, mas tenho que contar. Era um sábado – tarde da noite para nossa vila já dormindo. Fomos buscar a companhia mágica de nossas luzes. Nossas sim, todo mundo via, conhecia, mas não punham o reparo merecedor. Acostumaram e pronto – as luzes? Ah as luzes, sei estão lá fim de prosa, virou cerca, virou cobra, virou árvore, mas novidade não, nem te ligo. Perdeu o encanto para os quase todos.
Seguimos a acompanhar o bailado de luz por hora ou pouco. Depois nos colocamos a ir – surpresa – uma acompanhou o batido. Seguiu de longe. Entrou na vila desconfiada. Passou rente a farmácia fechada a anos, desceu a rua. Cruzou a outra rua. Na esquina o bar do Jorginho japonês, meia dúzia com as cabeças presas no dominó. Não adiantou gritar por nome, ninguém olhava.

Cruzou conosco, a meio trote a frente da escola e da igreja, à esquerda desceu rumo ao campo onde o circo ficava. A direita no fim do campo, a esquerda no corredor de gado onde morávamos. Não seguiu mais. Parou no moirão da cerca. Brilhava-brilhava. Descemos até o portão – e ela lá a vigiar. Não sabemos até quando ali ficou. Sentimos estranha proteção.

Por muito passar de tempo com as luzes compartilhamos. Segredos e mágica. Mudamos para cidade, as luzes, minhas luzes, as luzes de São Sebastião do Pontal. Se continuam lá não sei. Talvez falte platéia, talvez falte companhia. Hora vou lá de visita. Depois conto. O trecho ainda é longo, tem muita história, acabou não.





Diário de Uberlândia

O trecho - Uma parte


A vila não tinha padre, assim fixado, morando. Vez ou outra aparecia um na vila, coisa de espaço grande. Quando vinha fazia tudo no atacado, casamento, batizado, crisma, confissão: perdoava uns, penitenciava outros. Se o pecado era grande demais e a procuração de Deus não cobria, ai era aguardar o destino. Até extrema-unção atrasada o padre dava. Sem presença do moribundo, esse havia a tempos partido, mas a alma mesmo tarde era encomendada.

Morando lá apenas três irmãs missionárias, cuidando das coisas das coisas do espírito. Certa feita teve festa. Fartura de comida e bebida, uns mataram tatu atropelado e fizeram farofa outro trouxe carneiro para assar. As irmãs comeram enganadas achando que era frango e vaca. No dia seguinte mesmo depois de elogiar a comida passaram mal ao saberem da procedência. Coisa da cabeça, guia em tudo até no gosto.

O padre por nome Dázio, este sim, gostava de carne de caça. Dia daqueles ganhei um rabo de jacaré, de tanta dó do bicho, cozinhou mal, ficou com gosto de couro, de baixeiro velho até Tupã o cão das caçadas fez pouco, quis não. Jogar fora nem pensar. Veio a lembrança, toca a oferecer para Padre Dázio, ele estava na vila. Que maldade, será pecado?

Cobri a tigela com o mais alvo dos panos de prato da casa, linho branco com pequenas flores bordadas em azul e rosa, um primor de beleza. Cheguei à tardinha na casa paroquial, já escurecendo, o padre nos recebeu com um sorriso maroto, sentiu o cheiro do tempero – pouco via era ruim das vistas, pois não é que comer com os olhos não podia, minha salvação. O padre comeu ao enfaro – lambeu até osso, fazia gosto de ver. E eu, livre fiquei do jacaré de má sina, pelo menos morreu por causa uma – alimentou padre. Tomei o caminho de volta, Futrica e Tupã a correr junto rolando no pó – alegria de bicho.

As tardes e as noitinhas na vila não eram de passar. O vento ficava quieto, ofegante e cansado. O sol teimava em aquietar-se na distância, mas não sumia de todo rápido, era manso o seu sumir. Carregava de tinta e cor o céu, as matas e os pastos. Dava uma vontade e de não-sei-o-que-dava-de-vontade, era uma meia tristeza longe, amarro de boca de estomago – triste tristeza que vinha com a tarde finzinha. Doía. De certo era portanto que as gentes mais se matam nessa hora. Choro preso.

Depois o breu. A noite enfeitaitada, estrelas adoeciam o céu de tantas que tinham. Nas noites sem lua então, dava sombra na terra-pó. Sombra de estrela. Era nessas noites que vinham as luzes. Gostava de ir até fora da vila – em estrada que seguia rumo ao posto de leite, laticínio resfriador, um ermo.

Tinha um mata burro. Ficava no tope do trecho que rumava para o rio lá longe. Sentava lá quase sempre no silêncio. Criava sonhos, criava um mundo meu, meuzinho de fantasia, belo/lindo, puro sonho de tão bem sonhado.

Na calma dos contos ela devagar se anunciava. Tímida, primeiro brilhava rente ao chão quase sempre no meio da estrada. Parecia se oferecer. Candura. Flutuava com ainda pouco brilho prata-vermelho-azul palmo ou dois do chão. Como a buscar atenção aumentava o brilho, bailava em curvas rápidas para bem alto.

Sumia. No repente aparecia a poucos passos de mim já grande e agitada corria em rapidez de passarinho pela estrada, veloz. Sem aviso se atirava ao céu em frenética dança: rodopiava, parava se fazia vir/ir. Parava, parava. Apagava um pouco e outra vez vinha devagar para mim. Sem medo, sem som, sem vento. Só luz e movimento. Sumia. Cansou de gente sussurrei. Quando apercebía seu brilho em minhas costas na entrada da vila antes do limite criado, que era a sombra, a iluminação vermelha da lâmpada do primeiro poste. De lá ainda não tinha passado. Ainda.





Diário de Uberlândia