"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
terça-feira, junho 11
O trecho - Uma parte
A vila não tinha padre, assim fixado, morando. Vez ou outra aparecia um na vila, coisa de espaço grande. Quando vinha fazia tudo no atacado, casamento, batizado, crisma, confissão: perdoava uns, penitenciava outros. Se o pecado era grande demais e a procuração de Deus não cobria, ai era aguardar o destino. Até extrema-unção atrasada o padre dava. Sem presença do moribundo, esse havia a tempos partido, mas a alma mesmo tarde era encomendada.
Morando lá apenas três irmãs missionárias, cuidando das coisas das coisas do espírito. Certa feita teve festa. Fartura de comida e bebida, uns mataram tatu atropelado e fizeram farofa outro trouxe carneiro para assar. As irmãs comeram enganadas achando que era frango e vaca. No dia seguinte mesmo depois de elogiar a comida passaram mal ao saberem da procedência. Coisa da cabeça, guia em tudo até no gosto.
O padre por nome Dázio, este sim, gostava de carne de caça. Dia daqueles ganhei um rabo de jacaré, de tanta dó do bicho, cozinhou mal, ficou com gosto de couro, de baixeiro velho até Tupã o cão das caçadas fez pouco, quis não. Jogar fora nem pensar. Veio a lembrança, toca a oferecer para Padre Dázio, ele estava na vila. Que maldade, será pecado?
Cobri a tigela com o mais alvo dos panos de prato da casa, linho branco com pequenas flores bordadas em azul e rosa, um primor de beleza. Cheguei à tardinha na casa paroquial, já escurecendo, o padre nos recebeu com um sorriso maroto, sentiu o cheiro do tempero – pouco via era ruim das vistas, pois não é que comer com os olhos não podia, minha salvação. O padre comeu ao enfaro – lambeu até osso, fazia gosto de ver. E eu, livre fiquei do jacaré de má sina, pelo menos morreu por causa uma – alimentou padre. Tomei o caminho de volta, Futrica e Tupã a correr junto rolando no pó – alegria de bicho.
As tardes e as noitinhas na vila não eram de passar. O vento ficava quieto, ofegante e cansado. O sol teimava em aquietar-se na distância, mas não sumia de todo rápido, era manso o seu sumir. Carregava de tinta e cor o céu, as matas e os pastos. Dava uma vontade e de não-sei-o-que-dava-de-vontade, era uma meia tristeza longe, amarro de boca de estomago – triste tristeza que vinha com a tarde finzinha. Doía. De certo era portanto que as gentes mais se matam nessa hora. Choro preso.
Depois o breu. A noite enfeitaitada, estrelas adoeciam o céu de tantas que tinham. Nas noites sem lua então, dava sombra na terra-pó. Sombra de estrela. Era nessas noites que vinham as luzes. Gostava de ir até fora da vila – em estrada que seguia rumo ao posto de leite, laticínio resfriador, um ermo.
Tinha um mata burro. Ficava no tope do trecho que rumava para o rio lá longe. Sentava lá quase sempre no silêncio. Criava sonhos, criava um mundo meu, meuzinho de fantasia, belo/lindo, puro sonho de tão bem sonhado.
Na calma dos contos ela devagar se anunciava. Tímida, primeiro brilhava rente ao chão quase sempre no meio da estrada. Parecia se oferecer. Candura. Flutuava com ainda pouco brilho prata-vermelho-azul palmo ou dois do chão. Como a buscar atenção aumentava o brilho, bailava em curvas rápidas para bem alto.
Sumia. No repente aparecia a poucos passos de mim já grande e agitada corria em rapidez de passarinho pela estrada, veloz. Sem aviso se atirava ao céu em frenética dança: rodopiava, parava se fazia vir/ir. Parava, parava. Apagava um pouco e outra vez vinha devagar para mim. Sem medo, sem som, sem vento. Só luz e movimento. Sumia. Cansou de gente sussurrei. Quando apercebía seu brilho em minhas costas na entrada da vila antes do limite criado, que era a sombra, a iluminação vermelha da lâmpada do primeiro poste. De lá ainda não tinha passado. Ainda.
Diário de Uberlândia
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário