quinta-feira, fevereiro 15

Tão Brasil

Saiu de casa cedo, ainda noite. Do alto do morro viam-se as luzes da cidade ainda sonolenta, as filas de faróis de carros já começavam a se formar. Sabia que o trecho era longo e que muito tinha que pedalar até o trabalho.
A marmita enroladinha em pano bordado limpinho estava bem amarrada na garupa de sua bicicleta, capricho.
Nem acordara e já sonhava com a hora do almoço, comidinha feita por sua filha mais velha, 10 anos. A mulher o largara há tempos, fugiu com um pinta brava do jogo do bicho. Fugiu não, saiu e ainda deixou recado: “Fui! As crianças ficam contigo, o problema é seu. Foi bom fazer não foi? Agora cuida, mané!”
Resignou, amava as crianças, sentiu na verdade foi alívio, agora podia ser feliz. Podia agora aos domingos tomar sossegado e em casa uma cervejinha, podia assistir televisão até a hora que desse sono sem ter que ouvir resmungos ou ataques de raiva, ninguém mais chutava o cachorro ou espancava as filhas, sim, com toda certeza era feliz com sua vida.

Começou a descer o morro. O café frio e o pão adormecido ainda não tinham chegado a seu estômago, tal a pressa que saiu de casa.
Sentiu o gosto amargo na garganta como que querendo sair.
De solavanco em solavanco ganhou o asfalto. Pedalava menos pois ligeira descida, imperceptível, o empurrava suavemente para frente. O ar frio tinha agora cheiro de sal.

Ganhou a orla. Na avenida da praia prudentemente tomou a ciclovia, mas bem no cantinho, era tímido, não se sentia tão igual, não queria incomodar aos que faziam suas corridas, caminhadas ou passeios de bicicleta matinais, para manter a forma, a estética. Homens atléticos, moças torneadas, por ele passavam de nariz empinado. Ele era invisível, e nessa condição se sentia seguro.
Fazia de tudo para não ser notado, mas o ranger de ferro com ferro de sua bicicleta o denunciava, e ele, olhos pregados no chão como a pedir licença pelo espaço que estava a ocupar seguia adiante quase suplicante.

Já ia longe, quando do nada surge um imenso vulto branco que com ele se choca violentamente. Acertou-o de lado.
O monstro albino vinha olhando para trás — não o viu, afinal, lembra? Era invisível.

A roda dianteira da bicicleta topou com o pequeno degrau da ciclovia, e em movimento que durou horas, não dias, em câmara lenta é lançada a metros de distância espatifando-se no asfalto sujo. A marmita é atirada ainda mais longe deixando rastro de arroz e feijão, um pequeno ovo cozido rola até se esconder no canto da calçada fazendo companhia a pontas de cigarro e palitos de picolé.

Ele atordoado sente a cabeça e os joelhos a doerem. Um fio grosso de sangue luta para sair por entre seus cabelos, buscando seu rosto lívido, o pequeno riacho vermelho escorre até seu queixo e cai em cachoeira rubra por sua camiseta rasgada. Ganhou a camiseta de um político na eleição passada, uma para si e mais duas para os filhos. Deu foi briga. Os filhos eram quatro. “Imprestável” foi o que ouviu da sua mulher — que bom que lhe deixara, ainda chegou a pensar.
Sentiu o calor do sangue no ombro. Sentiu medo.

Levantou cambaleante e olhou para os lados. Novamente sente um safanão. É agarrado por dois guarda-roupas em forma de gente, seguranças de hotel de luxo. Estendido no chão quase a sufocar com um joelho a lhe apertar a garganta, começou a sentir a manhã escurecer e os olhos lacrimejantes em louca luta a se fecharem. A última coisa que, vagamente se lembra foi de uma voz horrível, bem próxima de sua cabeça a gritar palavras sem o menor sentido para ele, seria o cão? Seria o seu acerto, o seu juízo final?

— Don’t worry mister, everything is over control, this one won’t disturb our guests again. Call the cops!

Seu último lampejo de lembranças foi para os filhos, em particular para a caçulinha que ficou como um frágil anjo dormindo em roto berço.

William h. stutz
Fevereiro 2007

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