sábado, abril 11

Vizinhança solitária


Um alarme de casa ou carro não sei ao certo tocou a noite toda.
Eu e meu sono leve. Sono ainda de pai preocupado com as crias que hoje, tecnicamente já não carecem tanto desse zelo. O certo é que sons, assim como nossos medos, se agigantam na penumbra. Este alarme parecia tocar dentro de meu quarto. Amanheceu, pessoas saindo para o trabalho, outras colocando o lixo para fora. Alguns de hábitos matinais mais saudáveis passando em corrida ou caminhada. O alarme a tocar. Os carros orvalhados recebendo rápidos esguichos de mangueira. É para não manchar a pintura com o sol que estava começando a aparecer.

Os muros dos condomínios, costumo sempre dizer, atrasaram nosso amanhecer em três metros. E o alarme? Mesmo já meio abafado pelos sons do dia, continuava. Era tudo tão diferente. Se um alarme tocava, todos saíam à rua não importando a hora. Quantas vezes reuníamos em plena madrugada. Pijama, penhoir, caras amassadas marcadas de travesseiros. Sonhos interrompidos Mas todos lá a conferir a causa de alguma barulhenta sirene. Alguns de nós com seus cães nas coleiras, alguns até armados de tacos de beisebol, coisa de cinema.

Na maioria das vezes, os disparos eram causados por uma janela mal fechada, um gambá, gato ou coruja que inocentemente passeava em busca de comida. Ninguém no começo se chateava com os falsos apelos e tudo acabava em longa prosa, risos e combinações de encontros para o fim de semana. Isso tudo no meio da rua, no sereno da madrugada. Todos voltavam para suas camas e sonhavam amizade. Isso era antes, lá atrás.

Com o passar do tempo, nem mesmo os donos dos tais alarmes se importavam com eles, deixando-os tocar horas a fio. Ninguém mais se dava ao trabalho de sair e conferir o barulho. Pedro e o lobo. Uma, duas, três vezes e nunca mais. Como naquela noite, os alarmes podem soar alto e ininterruptamente manhã adentro. Ninguém liga, ouve, se dá conta. Os tempos são terrivelmente outros. Mais egoístas vivendo em micromundos andam as pessoas. A tal vizinhança solidária tão difundida pelas nossas polícias virou vizinhança solitária.

Conta-se nos dedos os vizinhos que cumprimentamos e pelos quais realmente nos preocupamos ou nutrimos algum benquerer de verdade. Os bons dias, as boas tardes, os acenos de mão, acompanhados de um sorriso sincero, sumiram no tempo. Longa madrugada. Não dormi mais depois do soar do alarme. E se fosse alguém em apuros? Alguém passando mal e, arrastando, que conseguiu disparar sirene em busca de um socorro que nem ele acreditava que viria? E se fosse realmente algo grave? Não haveria ajuda. A cavalaria com seus cabos Rustys não chegaria para salvar o mundo. O grito de Yo ho Rinty! não seria ouvido. O olhar apenas para o próprio umbigo e as falsas e efêmeras lideranças territoriais, defensoras apenas de seus próprios interesses conseguiram devagarzinho acabar com as tão caras e boas relações interpessoais. Ainda há tempo de modificar isso. Mudei para o interior buscando qualidade de vida, mas a cidade cresceu. O comportamento das pessoas ficou muito parecido com o da minha natal Vila Rica das alterosas. Lástima. O alarme ainda deve estar soando mudo. À noite saberemos se alguma tragédia por lá aconteceu ou se foi apenas outro falso aviso sonoro. Saberemos. Pela televisão.





Jornal Correio [Em pdf AQUI]
abril 2009

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