
Filhos criados, netos ao redor, realizado profissionalmente. Poucos, mas bons amigos, era feliz. Não praticava nenhuma religião específica, acolhia o que de bom cada uma oferecia. Da umbanda ao judaísmo, passando pelo budismo, lia muito Kardec. Sabia os salmos de cor. Era ouvinte atento da Mishná. Respeitava e reverenciava todas as coisas vivas, a vida em seu entorno era uma eterna contemplação.
Conhecia o canto de cada pássaro, os nomes das árvores, o gosto dos frutos. Pelo vento sabia se ia chover ou fazer frio, lia com fluência os sinais da natureza. Emburrava com a mesma facilidade que retomava o bom humor, era difícil e ao mesmo tempo fácil conviver com ele, apesar da ciclotimidade, era uma pessoa totalmente do bem. Não havia por que temer a morte, para ele uma simples passagem, uma ida à esquina, um natural ir.
Fizera alguns pedidos para quando sua hora chegasse: que seus órgãos fossem doados, que os verdadeiros amigos o “bebessem” em festa e queria ser cremado. Era só tocar no assunto que mudavam o rumo da prosa. Evitavam o certo?
Passou dessa para melhor dormindo, sem um dia sequer de doença ou hospitalização, literalmente morreu como um passarinho, e não foi de estilingada. Seus órgãos doados sem maiores transtornos. Decidiram em relação ao traslado do corpo que seria encaminhado para cidade onde houvesse crematório e de lá suas cinzas seriam recambiadas para sua família, para a cerimônia fúnebre.
Cremado foi, recolhidas as cinzas e aí, caros leitores, começa o verdadeiro martírio. Para trazer as cinzas foi contratada via internet, facilidades cibernéticas oferecidas em lindos sites, uma funerária com o sugestivo nome de “Embarcação” cujo lema era:
— Partiu dessa? Nós embarcamos!
O pote de cerâmica marajoara com as cinzas foi devidamente recolhido no local combinado e, segundo a empresa, seria entregue à família no dia seguinte. Amanheceu, passou o tempo e nada. Preocupados ligaram para a tal Embarcação, onde uma secretária pouco hábil apenas justificou que ocorrera erro de endereço e as cinzas foram parar em outra cidade, longe do destino final, mas que naquele dia mesmo já estariam no caminho certo e que aqui aportariam em segurança. O morto virara encomenda, estava em pé de igualdade com simples lajotas ou caixas de ramonas. Sexta passa e nada. Agora não adiantava ligar, a Embarcação não funciona nos fins de semana.
A segunda aflita custa a chegar e com ela, depois de longo périplo e atraso, enfim, o bom pó ao lar retorna. Viajou mais em cinzas do que em vida. E assim, fez-se o último de seus pedidos. Em festa, um mar de gente, era mais querido do que imaginara, bebeu o morto por sete dias e sete noites.
Da próxima vez, se houver, usarão sedex ou carta registrada, é mais seguro garanto. E ele, descansou em paz.

Publicado Ponto de Vista, Jornal Correio em 11/11/09
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