sábado, novembro 13

A caverna de Atacama




Platão nos legou o magnífico Mito da Caverna, encontrada no “A República”, livro 7. No Mito ou Alegoria, Platão coloca humanos a ver desde o nascimento apenas sombras projetadas à sua frente a ponto de tomá-las como as verdadeiras imagens do real. Viveriam uma realidade espectral e, assim, disforme seria a visão de mundo e de nós mesmos. Esta crítica à condição humana foi escrita há quase 2.500 anos atrás!

As imagens às costas daqueles que só sombras viam foram chamadas de ídolos. Nada mais existiria além delas, sobrando para a raça humana a mais pura e nada santa ignorância ou agnoia a tudo dominar.

Outro dia tivemos um “remake” contemporâneo do mito bem aqui perto, mais exatamente no árido deserto de Atacama, no Chile. Ali, durante 60 e tantos dias, 33 mineiros ficaram confinados a 700 metros em mina de cobre.

Resgatados diante de olhares do mundo todo, emergiram à luz não apenas homens magros e abatidos, não apenas trabalhadores de óculos escuros, roupas térmicas especiais. Saíram de cápsula - a pomposa Fênix 2, repleta de tecnologia de ponta, fabricada a toque de caixa pela Nasa - não apenas ídolos de um reality show mórbido e acidental, mas também frágeis criaturas e todas as suas sombras e fantasmas, cuja rotina individual aparentemente normal e sem graça foi abruptamente interrompida.

Nascimento de filho com transmissão direta, amante desconhecida, esposa revoltada, filhos a mentir para mães, falsas juras de casamentos, velho jogador de futebol sem expressão, e que, se agora tivesse idade, largaria o papel de motorista em tortuosas e estreitas vias subterrâneas para galgar lugar de honra na seleção chilena. A vida destes 33 homens foi dissecada à exaustão como corpo em aula de anatomia.

Vai virar filme em que o grande mote será a vida de cada um, o ficar lá engolido pelo deserto será apenas pano de fundo para tramas e rotinas pessoais dos homens da caverna, além, é claro, do heroísmo gringo na confecção da cápsula.

Aliás, já tem até nome: “Os 33 de San José”, ideia de produtora espanhola. Novamente, miséria e sofrimento humano gerando lucros.

Afinal, apenas contar sobre homens em um buraco e no escuro não teria muita graça. Assim, seria filme tipo Igmar Bergman ou Godard e não alcançaria o circuito comercial.

Passado o impacto do acontecido, findas as entrevistas, prêmios em dinheiro e viagens às ilhas gregas. A luz dos holofotes se apagará, empurrando almas de volta a sua vidinha operária de sempre. E aí, o quê restará? Pedra pura. Para empresas do entretenimento, certamente lucro gordo, para um mais esperto, quem sabe, alguns minguados trocados em direitos autorais. As minas possivelmente não vão aperfeiçoar seus sistemas de segurança como prometido. “Tudo como dantes...”

Infelizmente a volta à luz, diferentemente daquele retirado à força da caverna de Platão, que encontrou beleza na luminosidade de “Hélio, o Sol, que tudo pode, que tudo provê e vê” , não deve por Atacama ocorrer. A vida, ainda mais árida do que subterrâneo e deserto, se mostrará ainda mais escura e implacável.

Restará para muitos torcer por novo soterramento e providencial aparição da borboleta branca nas entranhas da terra como a novamente avisá-los que devem parar e aguardar nova mobilização mundial para resgatá-los da escuridão da condição humana, e de volta à fama.





Publicado no Jornal Correio AQUI

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