quinta-feira, novembro 18

Ritual doméstico


Entra ano sai ano e lá estão elas. É só um trovejar mais forte, um marejar de chuva e lá estão elas, fiéis e solidárias.
Causam incomodo é claro, pois vira um corre/acode de arrastar os mesmos móveis, um colocar de panos no chão e um eterno esperar para ver se não deram crias, se não se multiplicaram como nos é determinado: não apenas crescei, mas multiplicai - vos. Até que essas estão batendo firme na lei divina. Não aumentam, não diminuem. Sentem-se eternas e, portanto, já perpetuadas. Assim perde-se qualquer sentido darwiniano de preservação. Não há necessidade de deixar descendentes.

O interessante é que, de certa forma, se torna fácil livrar-se delas. O problema, e que problema, é que elas dependem da chuva para existir. Quando está a chover, não se pode mais controlá-las, pois, aí sim, o simples pode tornar-se calamitoso, posto que só se pode realmente resolver definitivamente o destino delas durante a estiagem. Aí vem outro dilema. Como não as vemos ou sentimos nessa época, delas esquecemos completamente e a vida segue seu curso seco, indiferente.

Se esquecemos, não tomamos providências e, assim, usando desse tinhoso expediente elas vão marcando presença em nossas vidas. Transformando-se em marcadores ajustados do passar do tempo, mais pontuais do que qualquer relógio atômico.

Pausa no texto. Além de maquita na construção ao lado, sou brindado nesse exato momento por famigerado carro de som anunciando preço baixo de alguma coisa que, por hábito, faço questão de não ouvir. Mas espere, está dando volta no quarteirão, deixa ajustar os ouvidos para saber do que se trata. Caspita! Só porque resolvi lhe dar atenção mudou de rumo e desceu aos protegidos condomínios do bairro.

A maquita, frenética em seu falsete de dupla sertaneja, continua em segunda voz. Já acostumei e, como uma amiga resumiu: tudo passa e logo poderemos desfrutar da presença de novos vizinhos. Aposto, mesmo de casa nova recém-construída eles também mais dia, menos dia, vão desfrutar de companhias parecidas como as nossas. É inevitável, faz parte do curso da vida além do mais, segundo uma teoria que ando a compor, e aqui falo aos sussurros para que elas não me ouçam, além de vida própria temo que sejam contagiosas, passando de casa a casa.

Não defini ainda em minhas especulações os mecanismos de transmissão, mas o mais provável é algum mecanismo quântico ou metafísico. Muito provavelmente receberei o prêmio Ignóbil se por acaso, por ventura ou por Tutátis, minha tese seja publicada. Não deixa de ser reconhecimento. Até o genial Galileu Galilei teve que se retratar!

Aliás, muito apropriadamente lá nos idos de 1612 ele nos legou seu “Discurso sobre as coisas que estão sobre a água ou que nela se movem”. O que aqui vivemos nada mais é do que uma “pequena” variação dos escritos do mestre da ciência. Basta que mudemos no título o “sobre” por “sob”. Pronto “Donec Papa” no caso, título. Resta escrever.

O tempo é o senhor da razão.

Também não há necessidade de desespero, pois até poéticas companheiras se tornam. Assim, ano a ano, vamos convivendo harmoniosamente com elas até que, em uma ou outra temporada de seca, me lembre de, finalmente, consertar o telhado.
E que atire o primeiro balde aquele que em sua casa nunca teve uma goteira.





Publicado no Jornal Correio de hoje veja AQUI

Um comentário:

Anônimo disse...

(...)Pausa no texto. Além de maquita na construção ao lado, sou brindado nesse exato momento por famigerado carro de som anunciando preço baixo de alguma coisa (...)

Me reconheci neste parágrafo. Imagine meu desespero agora, aos quase 50, me deparar com todo este barulho. Estive até agora "deitada no berço esplêndido do silêncio" interiorano, onde os galos orquestram despertando quintais. Aqui, na cruz Machadiana com Afonso Pena...peno! Será que me acostumo?

Maria Antônia.