segunda-feira, maio 14

14 em 3300






Cedo acordo, preguiça. Em dois tempos ganho rua para caminhar. Dia cinzento, pouco frio, triste. Avanço ligeiro. Passos, passos, passos. Aquecendo, observo o tempo, sons e cores. Duas ruas longe, portão eletrônico com rugido animal escancara imensa bocarra. Vomita carro prateado. Sigo a largo mover. Roncos. O bólido passa por mim sonolento. Outro rugido, a garagem se fecha em barulhento bocejo.

O vento sopra suave em meu rosto. Respiro o dia, viro à esquerda. Distante, no horizonte, perfilados, linha de prédios coloridos, parte da cidade. Pouco abaixo, ainda muitas casas e quintais. Uma, duas, três imensas paineiras mostram em flor seu colorido. Destacam-se. Sinais sentidos por poucos, seca por vir. Ipês também contam, cobrindo calçadas, folhas secas preparando florada.

Olho à minha frente e para o lado. Vejo mancha intocada de cerrado. Esforço-me para perpetuar a imagem. Logo virão casas. Sempre acontece, vi tantas vezes. Morte anunciada. Fadado à derruba. Provavelmente novos condomínios fechados. Clausura. Ali, cerrado já está cercado de arame. Portaria construída. Em ruínas é fato, decomposição. Até quando? Ponho reparo em grande área roçada e quase que de imediato incendiada.

Dias atrás, nas cinzas ainda quentes, bando de gaviões de bela roupagem dourada, imensos, se banqueteavam com ratos e cobras desalojadas pelo queimar. Caterva de bichos, patas em polvorosa, buscavam abrigo em terrenos e casas próximas.

Hoje apenas curicacas e outras aves a ciscar cinzas em busca de grilos e outros bichos assados. Curruíra canta forte. De longe vem resposta. Namoro. Viro à direita, íngreme subida, quarteirões imensos. Beiram muros dos tais condomínios. Sorria, você está sendo filmado. Big Brother urbano. Um carro passa a velocidade inconcebível até para rodovia. De dentro, a milhões de decibéis, escuta quem não quer: “ai se eu te pego, ai ai…” Foi-se rápido com seu mau gosto. Suor encharca camisa e boné.

Pequena gota contorna sobrancelha, escorre face afora. Casal passa em trote leve por mim: — Bom dia, dizem. Cumprimento sincero e agradável. Vários bons dias à frente, encontro moça a passear com três cães em suas coleiras.
Ela sorri, é domingo. Um catador de latinhas equilibra sacos enormes em sua velha bicicleta. Artista.

Bem-te-vis, canários-da-terra, joões-de-barro, maritacas, periquitos tuim, com seu verde metálico em barulho sob breve nesga de sol. Pavão do Dmae, rente à cerca, desafinado e estranho canto.

Carros, motos barulhentas, sacolas de lixo espalhadas nas calçadas. Desvio de sujeira de cachorro várias vezes. Ninguém se dá ao luxo de recolher. Pobres cães. Deixam marcas daquilo que supostamente seus mal-educados donos possuem na cabeça.

Mais lixo e papel. Latinha é atirada sem cerimônia pela janela de outro carro. Bebendo tão cedo ou ainda não dormiu. Barulhenta avenida. Passos, passos, passos. Dobro à direita. Em segundos o silêncio retorna. Cão avança. Estou quase terminando a minha volta diária.

Cão insiste em avançar. Posse (ir)responsável de cachorro bravo, este não deve ir à rua. Tento manter a calma. Impossível. Mais uma volta para relaxar e esquecer o acontecido. Pego outro caminho de volta, tolhido, por cachorro, na liberdade de desfrutar o dia. Está errado.

Quatorze quilômetros em 3300 caracteres com espaço. Resumo de uma manhã.






Publicado no Jornal Correio em 14/05/2012
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