quarta-feira, maio 8

Ouro velho

Outro dia em passar d’olhos em jornal de circulação nacional, me deparei com anúncio no mínimo estranho para meu pensar. Era algo assim: “Troque sua joia velha por uma novinha em folha, pagamos mais pelo valor de mercado do ouro”. O “velha” é que deixou-me intrigado. Cheirava a má-fé ou, no mínimo, truque para fisgar incautos.

De pronto, me lembrei da época em que morávamos em um ainda distante São Sebastião do Pontal, sem estrada de asfalto, sem ponte para o Mato Grosso. Tempo da balsa. Hoje São Sebastião está logo ali, rápido chegar em estrada bem conservada e, para cruzar o rio Paranaíba, a imponente ponte do Porto Alencastro, maravilhosa obra de arte da arquitetura do “estradas construir”.

Hora ou outra chegavam à nossa vila caminhões, principalmente de São Paulo, com o esperto propósito de trocar móveis novos por “velhos”. Jamais usavam a palavra antigos. Relíquias, então, nem pensar. Estratégia mascate. Visitavam fazendas, porteira a porteira, oferecendo seus produtos à base do escambo. Certa feita, ao chegar a um sítio para acudir vaca em parto, o proprietário me contou prosa: “Lembra daquela mesa imensa de jacarandá que era de meu bisavó e que você tanto gostava? Pois vem comigo, despachei a bruta e tenho certeza de que você vai gostar mais do que arranjei”. Quase caí de costas quando entrei naquela cozinha bem cuidada, de piso de cimento em nata, fogão a lenha com seus tijolos bem curtidos e pintura vermelhão sempre renovada. A imponente mesa de rara e secular madeira de lei, repleta de histórias e testemunha de tantas passagens, dava agora lugar a uma infeliz e sem vida mesa de fórmica vermelha e quatro raquíticas cadeiras

“O vermelho foi para combinar com a cor do fogão”, me disse o amigo em imenso abrir sorriso.
“Mas e os longos bancos também da mesma negra madeira da mesa?”, perguntei atordoado
“Ara! Dei de presente para o pessoal da troca, iam ficar sem serventia agora.”

Saí de lá triste, talvez por mim em sentimento egoísta, não pelo amigo que, levando manta ou não, estava feliz. Não voltei mais lá, mudamos de volta para Uberlândia. Não sei dizer se aquela alegria sitiante dura até hoje. Mas imagino a mesa se desfazendo em empenos e as cadeiras de pés de alumínio jogadas à horta.

E essa agora das joias? Anéis e brincos em coco e ouro, delicadamente trabalhados por mestre ourives. Escapulários esculpidos em Espanha no puro metal arrancado de nossas terras ainda bruto e retornando em caro adorno, passando de geração em geração. Terços que, como as capitanias, também eram hereditários. Se somadas e esticadas as Ave-marias, os Pais-nossos, as Glórias e os Creios e Salve-rainhas, que em fé ali se fizeram ouvir, várias vezes poder-se-ia, talvez, ir e voltar ao paraíso. Prestes a serem trocados por peças feitas em série, sem graça, falso brilho.

O mundo é dos espertos, dizem os de má-fé. Abusam das gentes simples, não apenas de nossos roçados e rincões. Basta pôr atenção em propagandas de televisão em que vendedores alucinados e aos gritos conseguem persuadir os que menos ganham a comprometer seus parcos salários em eternas prestações. Para comprar o quê? Frágeis mesas vermelhas em fórmica. Vermelho brilhante e quatro cadeiras com pés condenados, assim como a mesa, a durar tão pouco, que jamais tempo terão de guardar histórias e lembranças.




Publicado em Jornal Correio

Um comentário:

Maria disse...

Belíssima crônica, pura verdade. Chega a dar um aperto no coração.