Pois não é de ver que quando criança, lá em Belo Horizonte, eu criava passarinho preso em gaiola! Não existia lei que proibisse nem educação ou informação sobre o mal que fazíamos. Eram muitos, de várias espécies e cores. Sabiás com seu triste cantar matutino, canários-da-terra sempre sozinhos, juntos a outros, briga certa. Luta até a morte, gladiadores em armaduras de puro ouro, um horror em sangue.
Papa-capins, coleiras, sanhaços multicoloridos que no seu esbanjar de frutas sujavam tudo. Nas paredes, ficavam quadros de respingos de laranja, mamão, goiaba, banana, melancia em pintura multicor, dignos de grandes mestres abstracionistas selvagens, se é que este movimento existiu.
Curiós e bicudos, nobres em posse e clássico canto.
Bicos-de-lacre miúdos em gaiolinhas que mais pareciam caixinhas para gafanhotos chineses. Certa feita, no mercado central, comprei uma araponga. Durou dois dias. Um para acostumar com o ambiente, outro para “cantar”. Na tarde do segundo dia, lá fui eu devolver a bela ave. Rebelião de todos da casa contra o ferreiro emplumado. Perdi.
Não criava passarinho por gosto, mas por imitação. Todos criavam. Então, para ser aceito, eu tinha os meus. Moleque, criado na rua, tinha limitações. Não sabia jogar bola na “graminha”. Só era escalado quando a bola era minha. Mesmo assim no gol. Nunca usei bodoque. Minha natureza não permitia matar bicho.
O único peão que tentei jogar me custou oito pontos na testa no Pronto Socorro da Bernardo Monteiro.
Era muito bom em Bentialtas, variação do beti daqui.
Gostava muito de ler. Coleção toda de Júlio Verne, Monteiro Lobato e todos os Tarzans de Edgar Rice Burroughs. Viajava longe lendo Delta Larousse e Britânica. Ficava meio deslocado das crianças de minha idade. Também não sabia namorar. Já adolescente, passei aos clássicos. Sem cronologia: Homero, Virgílio, Dante, Platão, Sun Tzu, Maquiavel, Tomás de Aquino, Cervantes, Joice, Thomaz Mann, Fernando Pessoa e tantos outros. Lembrança especial dos escritos de Mark Twain e Oscar Wilde. Claro que nossos imortais – oficiais ou não – não faltaram. Machado, Guimarães Rosa e Quintana, meus preferidos.
Fiquei mais esquisito ainda.
Meu gosto musical também destoava. Meu olhar já se desviava para os pequenos mundos. Acompanhava carreira de formiga por horas. Dias vendo tanajura cavar buraco. Colecionava casca de cigarras rompidas em muda final. Caçava vaga-lumes. Deitava no quintal para ver estrelas, ver nuvens se transformado em índios e elefantes. Inventava e contava para mim mesmo histórias imensas. Irrequietos pensamentos sempre a fervilhar. Em resumo, era um menino no mínimo estranho. Adquiri certa normalidade quando adolescente. Mesmo assim, quem me conhece sabe desta “normalidade”. Antes preocupado com as esquisitices, com o jeito diferente de ver as gentes e o mundo. Hoje, acostumado, sigo murmurando histórias e olhando estrelas.
Os passarinhos. Um dia, coloquei-os em duas imensas gaiolas, subi a até perto da torre da TV Itacolomy no alto da Serra do Curral, cortando caminho pela favela “Cabeça de Porco”, lá do alto, perto do céu, abri as portinholas. Foi, acredito eu, a mais linda e colorida revoada que Belo Horizonte já viu sem notar. Desci chorando alegria e, desde então, não prendi nem pensamento. Como os meus bichos, ganhei liberdade.
Publicado Jornal Correio em 25 /04/2013