sexta-feira, abril 25

Passarinhos


Pois não é de ver que quando criança, lá em Belo Horizonte, eu criava passarinho preso em gaiola! Não existia lei que proibisse nem educação ou informação sobre o mal que fazíamos. Eram muitos, de várias espécies e cores. Sabiás com seu triste cantar matutino, canários-da-terra sempre sozinhos, juntos a outros, briga certa. Luta até a morte, gladiadores em armaduras de puro ouro, um horror em sangue.
Papa-capins, coleiras, sanhaços multicoloridos que no seu esbanjar de frutas sujavam tudo. Nas paredes, ficavam quadros de respingos de laranja, mamão, goiaba, banana, melancia em pintura multicor, dignos de grandes mestres abstracionistas selvagens, se é que este movimento existiu.

Curiós e bicudos, nobres em posse e clássico canto.
Bicos-de-lacre miúdos em gaiolinhas que mais pareciam caixinhas para gafanhotos chineses. Certa feita, no mercado central, comprei uma araponga. Durou dois dias. Um para acostumar com o ambiente, outro para “cantar”. Na tarde do segundo dia, lá fui eu devolver a bela ave. Rebelião de todos da casa contra o ferreiro emplumado. Perdi.

Não criava passarinho por gosto, mas por imitação. Todos criavam. Então, para ser aceito, eu tinha os meus. Moleque, criado na rua, tinha limitações. Não sabia jogar bola na “graminha”. Só era escalado quando a bola era minha. Mesmo assim no gol. Nunca usei bodoque. Minha natureza não permitia matar bicho.
O único peão que tentei jogar me custou oito pontos na testa no Pronto Socorro da Bernardo Monteiro.
Era muito bom em Bentialtas, variação do beti daqui.

Gostava muito de ler. Coleção toda de Júlio Verne, Monteiro Lobato e todos os Tarzans de Edgar Rice Burroughs. Viajava longe lendo Delta Larousse e Britânica. Ficava meio deslocado das crianças de minha idade. Também não sabia namorar. Já adolescente, passei aos clássicos. Sem cronologia: Homero, Virgílio, Dante, Platão, Sun Tzu, Maquiavel, Tomás de Aquino, Cervantes, Joice, Thomaz Mann, Fernando Pessoa e tantos outros. Lembrança especial dos escritos de Mark Twain e Oscar Wilde. Claro que nossos imortais – oficiais ou não – não faltaram. Machado, Guimarães Rosa e Quintana, meus preferidos.
Fiquei mais esquisito ainda.

Meu gosto musical também destoava. Meu olhar já se desviava para os pequenos mundos. Acompanhava carreira de formiga por horas. Dias vendo tanajura cavar buraco. Colecionava casca de cigarras rompidas em muda final. Caçava vaga-lumes. Deitava no quintal para ver estrelas, ver nuvens se transformado em índios e elefantes. Inventava e contava para mim mesmo histórias imensas. Irrequietos pensamentos sempre a fervilhar. Em resumo, era um menino no mínimo estranho. Adquiri certa normalidade quando adolescente. Mesmo assim, quem me conhece sabe desta “normalidade”. Antes preocupado com as esquisitices, com o jeito diferente de ver as gentes e o mundo. Hoje, acostumado, sigo murmurando histórias e olhando estrelas.
Os passarinhos. Um dia, coloquei-os em duas imensas gaiolas, subi a até perto da torre da TV Itacolomy no alto da Serra do Curral, cortando caminho pela favela “Cabeça de Porco”, lá do alto, perto do céu, abri as portinholas. Foi, acredito eu, a mais linda e colorida revoada que Belo Horizonte já viu sem notar. Desci chorando alegria e, desde então, não prendi nem pensamento. Como os meus bichos, ganhei liberdade.




Publicado Jornal Correio em 25 /04/2013


https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhVUYzZUZKUmphXzg/edit?usp=sharing

quarta-feira, abril 23

Velhos Amigos


"Velhos Amigos
Quando se encontram
Trocam notícias
E recordações
Bebem cerveja
No bar de costume
E cantam em voz rouca
Antigas canções

Os velhos amigos
Quase nunca se perdem
Se guardam para
Certas ocasiões

Velhos amigos
Só rejuvenescem
Lembrando loucuras
De outros verões
E brindam alegres
Seus vivos e mortos
E acabam a noite
Com novas canções

Conhecem o perigo
Mas fazem de conta
Que o tempo não ronda
Mais seus corações"

Almir Sater


domingo, abril 20

Palavras




O ano não foi dos melhores para chuva. Nunca vi tamanha sequidão em um janeiro e fevereiro. Enchente de São José só no norte do país. Em um Brasil desse tamanho, até a distribuição de chuva é desigual. Enquanto em algumas regiões cachorro anda tomando água de boca para cima, por nossas bandas o que se vê são represas secas, rachadas. Tablados de ranchos viraram galinheiros. Estaleiros ficaram tão altos que acrofóbicos devem evitá-los.

Em visita a amigo, este nos levou até beira d’água. Tivemos que andar um bom pedaço para lá chegar. Resolveu dar uma olhada em seu canto de pesca. Já tinha, a duras penas, empurrado o tablado para dentro do lago várias vezes. Agora não adiantava mais. Água pouca. Para represa voltar para perto do que um dia fora, serão anos. Isto se tiver fartura de chuva nas cabeceiras dos córregos e rios que formam a gigantesca lâmina, o espelho líquido que, faustuoso, faz fronteira com três Estados.

A continuar a toada e descontrole, dentro em pouco poderemos passar de Estado a outro sem canoa. Esquece ponte. Tem tempo? Aproveita, vai a pé.

Já que não tinha como pescar, o jeito era sentar à varanda e trocar prosa. Obviamente, o assunto não podia ser outro senão o desmazelo com as coisas da natureza e a vingança da terra.

Como um jogo de palavras, tentamos enumerar as tantas e quantas reuniões mundiais sobre o tema. Assim no susto vieram algumas: Convenção sobre Pesca no Atlântico Norte lá em 1959. Acordo sobre Poluição do Rio Reno, Cooperação entre países para prevenir a poluição e manter qualidade da água em 1963. Estocolmo 1972, Rio 1992, Rio +20. Paramos aí. A brincadeira ficou triste. Quantos tratados, princípios e compromissos foram assinados. Chefes de Estado saindo sorridentes nas fotos, mas, por dentro, já sabendo que nem em sonhos o acordado seria realizado.

Noite avançava lenta. Turma resolveu dormir. Decidi ficar ali mais um pouco. Lua jorrava luz sobre a curta lâmina sem marolas, mesmo com a brisa fria que soprava frequente. Fiquei imaginando quantas palavras foram gastas com questões ambientais e que, simplesmente, escorreram ralo abaixo. Desperdício sem conta.
Talvez aí estivesse a chave do insucesso. Como lagos, cachoeiras, rios e represas esgotaram-se ou estavam em nível crítico, reserva de palavras sinceras.

A politicagem com o meio ambiente, as mentiras embutidas em promessas eleitoreiras haviam consumido o repertório dos mandatários locais e mundiais. O termo “crescimento sustentável”, por exemplo, parou de ser produzido, estava fora de linha. Uso falso o havia consumido até os ossos. Não sobrara mais nada. Estava pálido, sem brilho/cor, escondido em algum recanto de cabeças ditas progressistas. Pediu aposentadoria compulsória. Palavras, assim como Anjos da Guarda de crianças, aposentam cedo, geralmente por invalidez ou periculosidade. Vernáculos e expressões tais como “prometo”, “farei”, “não vi”, “se eleito for”, estão perdendo viço à velocidade da luz. Estes são apenas alguns exemplos.

Estamos em ano eleitoral e, se você tiver a paciência que me falta para assistir ao teatro do horário político, preste atenção como essas e tantas outras palavras ditas soam tão fracas, cansadas, falsas, como que recauchutadas em oficina trambiqueira. Conhecem seu destino. Estão prestes a se transformar em língua morta.






Publicado Jornal Correio em 20/04/2014



https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhTDZiSE10TTVldjA/edit?usp=sharing

domingo, abril 13

Sombrinhas

O tempo rugia em pré-chuva. Aquela que não veio no tempo certo ameaçava desabar em cântaros. Seria muito bem-vinda. Choveu pouco, represas lá embaixo, risco de falta d’água. Os primeiros pingos bateram forte no telhado. Rufos como pratos de bateria, show de rock pauleira. Beleza. O calor poderia dar um descanso.
Bia resolveu, resolveu não, tinha que sair de casa. Sua tranquila agitação não lhe permitia ficar muito tempo em lugar só. Casa de mãe, acertar alguma conta, buscar João. Feliz muxoxo, pois gosta de andar, é a natureza dela, eu no meu sossego de bem parar acho bom. Fico no sorriso. No roncar das nuvens deu sapituca de resolver algum problema. Não sei bem qual, mas avisei pela milésima vez, evita a Rondon, ali é de pouco jeito. O rio encurralado, o excesso de asfalto, carreia tudo para lá. Vira rio como sempre. Não há quem dê jeito. A natureza sempre vence.

No preparar para sair, o corre e procura de sempre. Chave, cadê? E A bolsa? Outro canto. Celular, cadê o celular? Ah, ficou no carro (como sempre).
Certa feita ligaram de papelaria, havia deixado o celular no balcão. Aparelhinho antigo, quem iria querer? No Aeroporto de Viracopos, a mesma coisa. — Moça, esqueceu o celular!
A papelaria devolveria qualquer que fosse o modelo. Uberlândia, gente conhecida e boa. Porém, num aeroporto impessoal e internacional?

Recebe e liga, diz Bia. Não é para isso que foram feitos? Desdenha a tecnologia e vive muito melhor do que os obcecados.
Hora de sair. No bate rebate, toca de roda, uma lembrança: — Cadê minha sombrinha?
Procura por todo canto e nada. No carro! Nada. Juro que está aqui. Essa nunca mais.

Anos vendo esta cena em tempos de chuva. Claro, só lembramos de sombrinhas e guarda-chuvas nessa época.
Desconfio que desvendei o mistério. Sombrinhas e guarda-chuvas têm vida própria e são muito organizados. Possuem em sua composição algo que os faz desmaterializar após certo tempo. Prazo de validade metafísico, um arranjo transcendente.
É assim, desde o começo dos tempos, coisa de mais de 3.000 anos atrás. Contam que um imperador mesopotâmio mandou cortar cabeças de mil e duzentos súditos, só porque não encontrava sua sombrinha real. Mal sabia ele que a conspiração era da própria.

Em minhas pesquisas sobre o nada, descobri que o estoque inteiro de uma loja na 25 de março simplesmente desapareceu. Dono da loja chegou cedo para vender seus produtos pensando em faturar alto, garoava, novidade em Sampa… Qual foi sua surpresa ao levantar a porta da loja: nenhum guarda-chuva ou sombrinha lá estava. Prateleiras limpas. Assim como dizem existir cemitério de elefantes, deve existir um mundo paralelo habitado só por sombrinhas e afins. Lá o frevo corre solto, as “yangsan” colorem esse mundo fantástico. Milhões de sombrinhas que coloriram o show “Umbrella”, de Rihanna, se refestelaram em risos e arrepios, pois se desmaterializaram em apogeu de festa.

Não tem jeito. Ao comprar uma sombra artificial saiba que será temporário. Acostume-se com o fato. Dura pouco. Logo terá que comprar outra. É sina, predestinação. Contudo, sempre haverá loja em camelódromo louco para se desfazer de seu estoque, pois sabem que as peças tem dias contados.

Avisei Bia para não esquentar mais. Perdendo sobrinhas periodicamente lá se vão anos de um bem viver juntos. Só rindo.





Publicado Jornal Correio em 13/04/2014



https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOha1EtR3U0aFN6SGc/edit?usp=sharing

sábado, abril 5

Conspiração



Um amigo perdeu seu cão para a leishmaniose e contou sua triste saga aqui no Painel outro dia.
Doença estranha mostra nada no começo, bicho parece sadio, mas é uma das fases mais perigosas. Se tiver mosquito-palha perto pode levar à grave doença, por vezes fatal nas gentes se em forma grave, calazar.
Ainda não tem vacina aprovada e tratamento é proibido pelo Ministério da Saúde. Não é eficaz. Solução única e traumática: sacrifício do animal.

Só quem tem ou teve cão sabe o sofrimento, a dor de entregar companheiro para morte. Aqueles que possuem consciência cidadã sofrem, mas assim o fazem, não querendo colocar em perigo toda uma população. Meu amigo assim o fez. Compadecido, mas conhecedor dos riscos.

Só quem tem ou teve um cão pode mensurar tamanho carinho. Estima, afeição, mais milhões de adjetivos, compartilha-se com este milenar amigo canino.Só quem tem ou teve um cão pode descrever sofrimento de entregar amigo à imolação.

A caravana passa, os cães ladram. Muitos ficarão para trás, não verão mais caravanas.
Exercício conspiratório, fruto de mente atormentada com pequenos e gigantescos fatos. Certa feita mencionei suicídio das minhocas após chuva. Pulavam fora dos canteiros, se expondo ao tempo. Recolhidas à terra fofa, tornavam a minhocar até o chão de cimento e, ao sol torravam. Quando chove, fico a pensar no mundo das pequenas e seu entregar.

Produzir vacinas contra doenças causadas por vírus é relativamente fácil, mas quando se trata de protozoários, como é o caso das leishmanioses, da malária e da doença de chagas, só para citar algumas, aí complica.

Disse fácil? Ingenuidade. Pasteur, em final de longínquo 1881, conseguiu isolar o vírus da raiva. Dai à vacina protetora foi um pulo. É certo que a vacina de Pasteur mais matava do que salvava, pois a purificação desta era incipiente. Mas, estavam lançadas bases de uma vacina que salvaria milhões de humanos e animais de tão terrível doença. Hoje, a vacina é segura e quase não se tem relato de efeitos colaterais. Quer outra? A varíola. Causada por um vírus enorme para os padrões, o Shaquille O’Neal dos invisíveis patógenos.

Erradicou-se a doença. Temos muitas outras vacinas: Pólio, febre amarela, antitetânica. Esta última, um avanço, pois a vacina é contra uma neurotoxina produzida por uma bactéria. À lista: sarampo, gripe H1N1, catapora, rubéola, tantas outras e a mais recente oferecida pelo poder público contra o vírus HPV.
Pois bem, minha teoria da conspiração: se tão “fácil” é produzir vacinas contra vírus, qual a grande dificuldade em se desenvolver vacina contra dengue? Ora, os sorotipos bem são conhecidos e o genoma mapeado. O que se tem de concreto contra o HIV causador da Aids?

Controlar dengue através de vacina significa deixar de produzir milhões e milhões de litros de veneno e antitérmicos. Imunizar contra HIV vai quebrar muito laboratório. Setores da indústria farmacêutica e de venenos terão que mudar de ramo. Terror mental, o mais ligeiro pensar que grupos estejam visando lucro a troco de tanto sofrimento e morte. Não é isto que a indústria bélica faz?

Peço a todos os Anjos, Orixás e Divindades que seja apenas tormento e que tamanha ganância e frieza humana sejam frutos de paranoica imaginação Assim tanto sofrimento enfermo, quanto da dor da perda, seriam radicalmente amenizados.





Publicado Jornal Correio em 05/04/2014


https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhWkpSeFAtaTl6Q00/edit?usp=sharing