domingo, agosto 31

Do tempo



Era dado a conferir tempo quase todo dia antes de sair de casa. Os motivos desta mania deviam-se ao meu trabalho e de minha equipe, aliás, a melhor e mais comprometida turma que já conheci e com  qual trabalhei durante uma vida. Usando palavras minhas, de domingo passado, posso, sem medo de errar, chamar “meu” pessoal de “cuidadores públicos”, tamanho o envolvimento da turma com o fazer.

Cada Ordem de Serviço torna-se missão e não medem esforços para resolvê-la. Aqueles que não aguentam o pique não ficam. Isto é normal. Cada um, cada um. Ninguém é obrigado a dar certo com determinado fazer. Trabalhar em equipe é um desafio diário. Em cada cabeça um pensar, uma formação, um jeito de assim ser, um time de futebol a torcer. Desavenças naturalmente surgem, mas cabe a nós, grupo, resolver qualquer pendência por menor que seja, o mais rápido possível. Senão, se agiganta, vira dragão a expelir labaredas e, aí, só Jorge Guerreiro, de quem sou devoto incondicional, para resolver.

Puxando da hagiografia, convém lembrar que Santo Jorge foi soldado romano no exército do imperador Diocleciano. Para muitos de nós brasileiros, e aí me incluo, criados à luz do sincretismo religioso, São Jorge também é poderoso Orixá: Ogum senhor dos metais, deus da guerra, da agricultura e da tecnologia. Como ele, nós também vivemos do improviso, pois muitos dos equipamentos que carecemos usar ou não foram inventados ainda ou são de difícil aquisição.

Mais uma vez, nosso pessoal mostra criatividade ímpar: aparadores de redes para captura de morcegos, abrigos, lonas para proteção de chuva e frio da mata e caixas organizadoras, se transformam em confortáveis recipientes para transporte de serpentes. Há também os terráreos de escorpiões antifuga e mil outras coisas que, ao longo dos anos, tivemos de inventar para que o cuidar das solicitações da população fossem atendidos e nós tivéssemos o máximo de proteção individual.

Felizes, loucos somos. Um bando de Melquieades e de José Arcádio Buendía da surreal Macondo de Garcia Marquez, vivendo bem aqui em nossa Uberlândia. Criando ferramentas e instrumentos de trabalho, recolhendo medos, desmistificando crenças enraizadas sobre vida de nossos bichos.

Ia falar do conferir tempo todo dia, tomei outro rumo. Céu de brigadeiro se abriu e me conduziu em voo pássaro, contrariando a Lei de Bernoulli. Pensamentos não seguem leis da física. São regidos por pura poesia e pirotecnia das emoções. Da previsão de tempo, falo depois, antes de trovejo, prometo.

Em caso de mal-olhado ou emanação de ódio dirigida à minha pessoa ou a meu grupo de trabalho depois de tudo aqui declarado, só me resta reza de proteção: “Eu andarei vestido e armado, com as armas de São Jorge, para que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me enxerguem, e, nem em pensamento, eles possam ter para me fazerem o mal. Facas e lanças quebrarão sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem”. Salve Jorge!







Publicado Jornal Correio  31 de Agosto de 2014








terça-feira, agosto 26

Atender ou cuidar?



Podem parecer sinônimos, longe disto são. Vamos à didática. Um é verbo intransitivo, outro transitivo. Na gramática de nossa pátria língua, verbo é aquela palavrinha que designa, indica ação, situação ou mudança de estado. Esta definição, por si só, separa bem as duas palavras. Atender é prestar atenção, ter em consideração, zelar de alguma coisa.

Cuidar é bem maior. Vai além. É imaginar, supor, pensar, meditar sobre, ter cuidado, demonstrar interesse.
Bom, serve também para os idólatras quando usado como verbo pronominal.

É de bom alvitre esclarecer que não fui eu que escolhi tais significados. Estão em qualquer bom dicionário. Aquela coleção organizada, em ordem alfabética, de palavras ou outras unidades lexicais que muitos detestam consultar.
Mas deixemos essas chatices linguísticas de lado e vamos ao ponto.

Imagine um filhote de passarinho caído de ninho aquecido em suas mãos protetoras. Você está atendendo a esse serzinho trêmulo em pânico abandono ou está cuidando dele? O atender chega a ser algo frio, se não com ponta de desprezo. Às vezes, uma penosa e irritante obrigação. O cuidar alberga, é holístico, transfere bem-estar e segurança.
Começo para nos definir, servidores públicos da saúde. Nobre função quando aprendemos ou já nasce conosco o prazer pelo cuidar.

Um simples telefonema, trazendo uma angústia, um problema, deve ser cuidado com o carinho que bem merece. Acontece toda hora por aqui. Um morcego, um escorpião ou uma cobra, quanto pânico podem trazer para quem está do outro lado da linha em busca de cuidado, de ajuda em sua aflição. O que para nós é rotina, para quem se depara com os bichos é confronto.

Vamos mais longe. Você gostaria de ser atendido por um médico ou cuidado por este profissional?
Eu escolho o médico cuidador. Aquele que te ampara por completo, que te olha nos olhos e que verdadeiramente te escuta. Arrisco a dizer que, grande parte da cura (ou não) começa na consulta. Se começa por um estranho avaliando outro, não pode dar muito certo. Carece afeto no sentindo amplo da palavra. Aqui, estendo a todos nós servidores públicos, que temos por ofício cuidar das aflições das gentes.

Se dependesse de mim, seríamos chamados de Cuidadores Públicos e com muita honra. Citei médicos, mas falo de todo profissional ligado ao serviço público ou não. Quando aprendemos a cuidar nos tornamos realizados, felizes e completos.

Aquele bom dia sereno seguido do nome do servidor/cuidador que fala ao telefone é o começo de uma relação que pode ser agradável ou um terror. As portas do serviço público são os primeiros contatos. Um rugido mal-humorado coloca o munícipe na defesa. Fecho com palavras do dr. Antonio Carlos Lopes, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica: “A medicina é humana em sua essência, feita de humanos para seres humanos. Não é possível mais assistir à sua fragmentação em duas medicinas – uma para os pobres e outra para os ricos. Dar e receber assistência médica de qualidade e universal, mais do que um anseio, é um direito de todos.”

A vida deveria nos preparar sempre para cuidar. Quanto a atender? Deixa que a porta eu abro.






Publicado no Jornal Correio em 24 de Agosto de 2010

domingo, agosto 17

Sessenta



Raça humana, as gentes do mundo inteiro, desde sempre, por motivos muitos, teve a mania de exaltar ou temer extremamente datas redondas. “Portanto, uma referência: seja para comemorar, enaltecer ou refletir”. Solta, entre aspas, esta frase não é minha.

Aparece desse jeitinho em dezenas de textos, sem fonte, portanto, perdido fico e sem identificação segue. Uma infelicidade no mundo da web em que as autorias se perdem em infinito espaço binário, sem fronteiras, sem dono, sem ética ou, muitas vezes, sem pudor. Eu mesmo já tive vários textos plagiados na íntegra por certo cidadão de mídia sem o menor escrúpulo, mas são águas passadas. De raiva a dó, pena foi pulo ligeiro. O Ministério da Saúde adverte: raiva, mágoa e rancor matam.

Algumas destas esféricas datas recentes: 1910 – Revolução Mexicana; 1930 – Começa a Revolução de 1930 (a vá!); 1940 – É aberto o campo de concentração Auschwitz na Polônia, pelos nazistas; 1950 – Maracanã é inaugurado; 1960 – Inauguração de Brasília.

Em 2000, o mundo ia acabar. Virou nada e aqui estamos. Os “milenaristas” se deram mal. Ah, em 1954, nasci. Mas “peraí”, 54 não é data redonda! Correto, mas a idade que mês que vem faço é: Sessenta anos. Pois sobre isto é que quero falar com você.

Ô datazinha fatídica essa para todos que lá chegam! Pense comigo. Até aos 59 anos, 364 dias, 23 horas e 59 minutos somos pessoas normais. Avance um minutinho. Pronto, viramos terceira idade. Outro dia no trânsito paramos atrás de ônibus. Distraído levantei os olhos, enorme cartaz com grisalhos sorridentes empunhando carteira sob frase, algo assim: Você idoso, tem mais de 60? Junte-se a nós. Carteirinhas ameaçadoras em riste a me convocar: “I want you!” A palavra idoso e os 60 pareciam piscar em neon festivo.

Idosos, passamos a ter vaga especial de estacionamento, filas exclusivas, a pagar meia em inscrições de corridas, concursos, cinema, teatro e afins. Há também descontos na compra de remédios e um monte de coisas. Para uns, são merecidas conquistas em país tão desigual, para outros tantos, pode ser reforço ou retrato de uma realidade falseada. De uma hora para outra, o cabra perde metade de estímulos para adiante seguir e pior, como diz meu compadre Geninho, pode perder metade de sua autoestima.

Deixo claro que me sinto muito bem. Idades e seus encantos próprios. Ouvi de um globetrotter, quando perguntado sobre hora de parar: “When the head says go, and the legs say no!” (Quando a cabeça diz vai, as pernas, dizem não). Em português, não rima e fica meio sem graça, mas é sério. Minha cabeça sempre diz GO! As pernas ainda não gritaram NO!

Comemoremos, pois, cada data redonda de nossa vida. Cada etapa com seu sabor característico, perfume e cor, assim como o antigo “Dulcora”.

“Drops dulcora /A delícia que o paladar… adora/ Quadradinhos embrulhadinhos um a um/ Você quer um? (…)”.
Lembra? Não? Então sua data redonda é bem inferior à minha. Aproveite a alegria de viver sem moderação (alegria desmedida, que fique bem entendido).






Publicado Jornal Correio em 17 de agosto 2014



Sessenta

domingo, agosto 10

Perdas - parte II


Perdeu o fio a meada? Não se preocupe, a Parte 1 está no jornal de domingo passado, passa lá via web ou clique Perdas parte 1

.A criação de uma nova edição do “Livro da Lei”. Desta vez universal, voltado muito mais para a beleza, para a paz e alegria de viver. Um livro que poderia ser facilmente compreendido por todos; livre dos medos, dos pecados inventados, dos preconceitos que as errôneas análises levam multidões a eterna confusão e atrito. Menos medo e pecado, mais alegria, confraternização e consequentemente, mais paz e harmonia entre os povos.


Seria também impossível comercializar o seu conteúdo e, assim, só haveria a religião do amor. Ninguém ousaria falar em nome de Deus com ameaças tipo chamas eternas a queimar que nem churrasquinho do “Titõe”, pois as suas palavras seriam sempre serenas e bem-humoradas.
Humanidade, alforriada da ameaça de arder no caldeirão do coisa ruim, sem o terror das ameaças de mercadores da palavra divina, respiraria aliviada.  Nada de comprar terrenos no céu em troca de algo, corretagem imobiliária do paraíso não teria mais vez. Nada de dízimos ou castigos. Se este foi o plano da Diretoria celestial, acertaram em cheio nos levando o que há de melhor no trato com as ideias e emoções.

Mais humor, compaixão, menos cobrança, menos pecados. Um livro que realmente libertasse os homens de amarras invisíveis, mas causadoras de sofrimento e tristeza. Cada um saberia realmente separar o certo do errado. Dogma único: Não farás mal algum a outro ser vivente.
Pessoas queridas que, por motivo honrado, foram chamados à luta, escreverão livro mais humanizado, livre para todo o sempre de toscas interpretações e imitações. A eles faço um pedido: não se esqueçam, por favor, de disponibilizá-lo o mais breve possível na web para download. Prevendo os bilhões de acessos, sugiro humildemente que utilizem o sistema Torrent. Boas sementes germinarão e o mundo será de fato um melhor lugar para se viver.

Mal penso em deitar a pena – caneta esferográfica vá lá, em susto recebo a notícia que o mágico escritor Ariano Suassuna acaba de seguir viagem depois de rápido adoecer. A pressa em repensar o mundo é tamanha ou a amiga Samira, quando nos diz que propositalmente “querem deixar a terra menos interessante”, pode estar coberta de razão.

Eu cá com testa franzida de espanto, roubo do poeta Vinicius de Moraes, que lá já está a espera dos amigos com seu indefectível copo na mão, verso de “Cotidiano 2”: “Às vezes quero crer mas não consigo / É tudo uma total insensatez /Aí pergunto a Deus: escute, amigo / Se foi pra desfazer, por que é que fez?”

Já nosso Drummond, pernas cruzadas em cantinho de céu, ao lado de seu anjo torto, tímido sorriso mineiro nos lábios, cotovelo apoiado na perna deve estar a balançar o dedo indicador em suave movimento: Bem-vindos, hora de ser gauche (nessa) vida.







Publicado Jornal Correio em 9 de agosto de 2014


https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhazdhbGNLanJyNEE/edit?usp=sharing








domingo, agosto 3

Perdas - Parte 1



Amiga paulista, Samira, com olhar cinzento de tristeza, soltou uma frase que me levou a distante pensar: “Continua o movimento de deixar a terra menos interessante”. Ela se referia às partidas, quase que na mesma carruagem, de Rubem Alves e João Ubaldo Ribeiro. Somo aí a recente viagem do mestre Clarimundo Campos, proprietário eterno deste espaço que, despretensiosamente, como inquilino, ando a ocupar.

Se nosso Clarimundo não galgou merecida expressão nacional e mundial, foi porque assim não quis. Preferiu a quietude a se submeter, quem sabe até, ao peso de um fardão.

É verdade e estranho que, de uma pancada só, nos foram tirados três grandes nomes das letras. Mas pensando bem, vamos juntos raciocinar sobre os acontecidos. Alguma coisa deve estar ocorrendo lá em cima. Aplico o termo “em cima”, pois é de corrente uso. Os bons sobem, os maus descem. Mas é tudo uma questão de crença e posição geográfica, pois se assim fosse mesmo estaríamos cheios aqui por nossas bandas de japoneses maus e eles lotados de gente nossa e ruim.

Talvez, por determinação da Diretoria, tenha sido instituído que fossem chamados os melhores escritores deste plano para tarefa divinamente hercúlea. Se pesquisarmos, veremos que, além do nosso trio imortal, outros laureados com Nobel de literatura, como o sem adjetivos de primor Gabriel Garcia Marquez e tantos outros mundo afora, de alguns meses para cá, andam fazendo mala e partindo – Garcia Marquez nos deixou outro dia, em abril deste ano. Quantos de outros países se foram e não sabemos? Coincidência? Não acredito nisso.

A Diretoria já usou desse expediente outras vezes. Um recente se deu quando os anjos e querubins, tomados de enfado, cantavam aos bocejos as musicas celestiais. Convocada reunião extraordinária, resultou na ida de Amy Winehouse para dar um upgrade melódico na turma dos pequenos. Michael Jackson também subiu, não deu certo. Os ággelos em toda sua pureza tinham medo dele.

Para mim, eles foram convocados para refazer mandamentos, desta vez, não em tábuas, mas na mais pura das pedras preciosas, lapidada em joia com esmero pelo talentoso Hefesto, marido traído de Afrodite. Mas deixemos os deuses de outra época de lado.

Além de atualizar os mandamentos que até os dias de hoje continuam em versão beta e muito pouco usados pela humanidade, pode ser que outra tarefa seja conferida ao grupo a dedo escolhido.

(Continua domingo que vem)







Perdas - Parte I






Publicado Jornal Correio em 3 de agosto de 2014