domingo, setembro 28

Segundona



Segundona, como de costume, pego trecho a pé para o trabalho. Caminhada cedo, boa para espantar restinho de sono que não sai nem com banho frio e bucha, mesmo tendo corrido as dez milhas domingo, me sinto pleno em alegria para começar a semana.

Os bons-dias são quase sempre para as mesmas pessoas; o senhor reciclador de latinhas, alegre por farta colheita, restos de sábados e domingos. “Tenho de levantar ainda de madrugada – me confessa – a concorrência tá grande. Tem até dono de ferro-velho que traz ajudante, fica desigual – me conta meio triste do alto de sua rangedora bicicleta.” Entristeço. Para as empregadas domésticas ou “ajudantes” como a sociedade, como que envergonhada, insiste em chamá-las, um quase pedido de desculpas. Os vigias noturnos deixando seus postos.

Como fumam as empregadas. Descem do ônibus e, em sua maioria, é botar pé no chão, puxam da binga, acendem cigarro. A indústria do tabaco investe em filões cada vez mais frágeis em informação. O cheiro de fumaça deles se mistura aos dos carros aflitos e impacientes. Segundona, e como todos os dias da semana, temos, nós pedestres, que enfrentar uma travessia perigosa na Nicomendes.

Já tentou atravessar aquela avenida na altura do Dmae? Uma aventura de alto risco. Faço rapel, montanhismo, trilha de mata. Juro, tenho mais medo dessa travessia do que descer em cordas o pontilhão da Fepasa sobre o rio Araguari – e olha que são noventa metros de queda livre e o rio ali, moço, traiçoeiro. Muitas partes de nossa cidade são assim, não foram feitas para humanos a pé. Privilégio dos carros. Caminhantes, bicicleteiros ou ciclistas, como queiram, mas aí tem grande diferença, concordam? Também não têm vez no trânsito e, principalmente, na Nicomedes.

Bicicleteiro é Seu José catador de latinhas, é o peão de obra que leva na garupa embrulhadinha sua marmita e garrafa de café. É o estudante de escola pública, é o vigia sonolento que busca cama com o chegar do sol. Ciclista é o que anda em grupos organizados, roupas colantes, coloridas, reluzentes, capacetes com desenhos estilo Andy Warhol ou Dali.

Não existe uma faixa de pedestre que seja naquela redondeza. Como existem “direitas livres” no encontro de duas avenidas de grande movimento. O passar de carros em alta velocidade é grande. Resta a nós, invisíveis seres de cidade, esperar oportunidade para atravessar. Raro o dia em que este campo minado não nos obriga ou a uma carreirinha trotada ou ficar parado congelado e rezar para que os motoristas nos vejam, quase todos ao celular, adiantando algum expediente, ficam cegos para tudo que não seja de metal e maior do que eles.

Como a maioria da turma anda de carro, acho pouco provável que algo seja feito por ali. Repito pela enésima vez, me faço Panglós, o otimista, apesar de duvidar, acredito que algum dia irão olhar com mais carinho para aqueles, que como eu, optaram por caminhar ou bicicletar. Perigoso, mas saudável. É isso, se até aqui no texto cheguei é porque em relativa segurança fui e voltei. Mas amanhã. Bom, amanhã é outro dia. “Viver é muito perigoso” não é amigo Guimarães Rosa?







Publicado Jornal Correio em  28/09/2014



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