segunda-feira, dezembro 29

Mintaka, Alnilam e Alnitak

Mintaka, Alnilam e Alnitak, estes nomes cutucavam sua cabeça desde que tinha pegado trecho ainda de madrugada rumo ao vilarejo para providenciar registro das filhas trigêmeas que haviam nascido semana atrás.A mulher guardava resguardo cercada e vigiada de perto por duas parteiras imensas de gordas. Quarto sempre na penumbra, ainda não tinha botado os olhos de verdade nas meninas.

Quando foi permitido entrada breve, pousou olhar em tênue brilho e um monte de perninhas e bracinhos magrinhos, gravetos prontos a quebrar ao menor toque. Olhou com curiosidade de quem olha roça brotando. Um pequeno grunhido vindo do berço de bambu que ele mesmo fizera foi o bastante para que expulso fosse do guardo quase a vassouradas.

Passou noite em claro, sentado em banquinho junto à porta do quarto. Cada grito de sua mulher lhe parecia facada no peito. Sofreu em silêncio e solidário as dores do parto. Aba do chapéu ficou amassada de não tampar mais sol. Quanto, num repente, após longo silêncio que o deixou apreensivo e alerta, uma carona suada apareceu à porta e gritou: “São três!” Três o quê – quis perguntar, não deu tempo. Segundos depois, a mesma figura novamente anunciou “São três, homem, três meninas.”

Sentiu bambeza nas pernas, a botina dobrou de lado. Teve de encostar-se à parede de adobe para não cair. Me Pai, meu São Jorge, três de uma vez. A esposa estava grande mesmo, pés inchados, mal conseguia beirar o fogão. Cozinhava de lado de tão barriguda. Mas três!? Pensou, meio rindo na porquinha Piau que teve exatos três leitõezinhos.

Passado o baque, sabendo que tinha de buscar registro das meninas. Pediu e foi atendido pelas parteiras para ir à vila, pois o resguardo iria durar mês inteiro. Trinta dias naquele cômodo escuro, tomando canja e gemada para descer bastante leite e pior, sem lavar os cabelos. Pensou com desejo na esposa. A viu em sonhos lavando seus longos e negros cabelos que iam até a cintura na cachoeira do Salto, logo ali no quintal. Sentiu um arder por dentro. Arreou o cavalo e seguiu lento. No cartório, confusão. O tabelião não queria registrar com aqueles nomes. “Assim não tem jeito Seu José, é esquisito demais.”

Bateu pé, mentiu promessa, rude não implorou, mas entre dentes rosnou assim ia ser. Assim foi. Conhecida fama daquele homem franzino, chapéu apertado na cabeça, punhal de prata sempre na cinta, nas costas. Saiu de lá confuso, mas satisfeito. “Diacho, de onde me brotaram na ideia esses nomes pras meninas?”

Na volta mostrou os papéis.
– Ô Zé endoidou, que nomes são esses, tirou isso de onde? – Ele, coçando a cabeça sem resposta. Realmente não sabia, não tinha a mais longínqua lembrança de ter pelo menos ouvido estes nomes.
– Pode até ter papel com estes nomes estranhos, mas nós vamos chamá-las, viu Senhor José, – seu nome foi proferido com gravidade – nós vamos chamá-las e a vida toda de Maria das Graças, Maria Cristina e Maria Aparecida. Serão para sempre nossas três Marias, estamos entendidos?

Enquanto isso, em algum lugar bem no centro do Cinturão de Órion, um casal sorria feliz: as três Marias brilham novamente.






Publicado em Jornal Correio em 28/12/2014





domingo, dezembro 21

Ponto de vista






"Em terra de olho quem tem um cego, errei."
Placa do Barari - Praia de Santa Monica -ES

Colega de trabalho de longa data. Da convivência diária nasceu grande amizade. Inevitável, nosso grupo funciona assim. Sempre sobra tempo para prosa, seja no laboratório, no campo ou em confraternizações. Nestes momentos rola bom churrasco ou galinhada e, claro, cerveja gelada. Consequência? Laços de afinidades que se fortalecem, além do excelente, ponderado e rápido trabalho em atender gente. Saber acumulado em reduzir aflição de pessoas que nos procuram, por conta de um morcego, escorpião, aranha ou cobra.

O cara é uma enciclopédia viva no que diz respeito a futebol. Sabe tudo, assiste tudo. Desde campeonato do Terrão ao nacional das Filipinas ou torneio de peladas dos Montes Urais. Escalações, nome de técnicos, colocação na tabela, situação financeira dos clubes, quem entrou ou saiu. Até nome completo e ficha corrida dos juízes o cara domina. Possui dúvidas sobre futebol ou afins? Consulte o Divino, que tem resposta na ponta da língua.

Sua história de vida, como a de cada um de nós, daria livro. A dele em particular, com passagens hilárias. Nasceu na roça, na roça morou por muito tempo. Freqüentava a escola rural da região. Era traça de livros. Devorava todos que encontrava. A pequena biblioteca da escola ficou ainda menor para sua fome de leitura. Hábito este que carregou até há pouco tempo. Nos momentos em que trabalho não havia lá estava Divino agarrado a um livro. Não sei se continua assim, pois agora o vejo nas paradas fazendo palavras cruzadas. São muitas e muitas. O vocabulário adquirido nas leituras facilita.

Menino de roça, moleque que só, com seus irmãos aprontava todas. Ajudavam o pai na lavoura, mas na hora de brincar nada os impediam de subir em árvore de fruta, roubar galinha de vizinho, passar susto em estradeiro, pitar talo de chuchu, caçar passarinho e nadar no córrego. Vida normal e sadia de menino do campo.

Para ele o mundo era simples, belo e normal. Nada o incomodava. Certa feita, em meio a molecagens, um cisco pousou com força de pedra em um de seus olhos. Imediata escuridão. Tropeçando, caindo e, claro, apavorado, correu buscar socorro junto à mãe, que tomou aquilo por manha, preguiça de carpir roça. Como um cisco em um olho poderia cegar alguém? Larga de finura e toca volta a ajudar seus irmãos! Aos poucos, as lágrimas cuidaram de clarear as vistas. Vida seguiu dura, mas serena.

Meses depois do ocorrido, apareceu por aquelas bandas, na escola, médico à mando da Secretaria de Educação para avaliar criançada. Exame de vista fazia parte. Quando o doutor tampou um dos olhos de Divino, o pânico tomou conta da criança:
— Acode! Tô cego! Gritou apavorado. O médico assustado apurou exame. E não é de ver (ou não ver) que o menino tinha um olho cego de nascença e ninguém notara? Como tinha nascido assim, para ele o mundo era desse jeito mesmo, compensado pelo olho bom. Em casa chegaram a cutucar o globo ocular para confirmar o fato. Não deu outra era assim mesmo.

Em nada atrapalhou desenvolvimento, nem crescimento pessoal. Leva vida normal e, na verdade, enxerga mais com um olho do que muitos com dois. Vê longe.
Com o avançar da idade só um problema vem devagar chegando. Descobriu que está ficando míope. Sacanagem!







Publicado em Jornal Correio de 21/12/2014



domingo, dezembro 14

Bom de Morar







Em um domingo de novembro, o leitor João Vendramini publicou o seguinte comentário sobre as “melhores cidades para se viver”, conforme ranking BCI100, produzido pelo escritório britânico Delta Economics & Finance para a publicação “América Economia Brasil”, que avalia um conjunto de 77 atributos das cidades do país – publicado em 31 de outubro aqui em nosso CORREIO: “Moro em São Paulo e trabalho em São Caetano do Sul. Mauá em oitavo e Diadema em 15º lugares? Minha opinião: esse ranking é pífio e patético. Pobreza e violência não permitem que essas cidades possam ser qualificadas como “melhores cidades para se viver”. Sinto muito, mas eu não usaria esse ranking para nada.”

Não tem como não concordar com o senhor Vendramini. Só de imaginar a cidade de Santos em fins de semana onde falta até ar para se respirar como a campeã da lista, e Belo Horizonte com seu trânsito agarrado em terceiro, me ponho a imaginar se a turma que elaborou a pesquisa se arriscaria a morar em algumas das cidades que ali aparecem muito acima de Uberlândia, 19ª colocação.

Acho que a pergunta que temos de fazer para estes caras é: “O que vocês consideram qualidade de vida?” Como eles jamais vão me responder, resolvi elaborar a minha lista das 10 melhores cidades para se viver, de acordo com meu gosto particular. Adianto que não vou usar o manjado Índice de Desenvolvimento Humano Municipal no Brasil (IDHM) nem outro indicador oficial. Vou usar o recém-criado IGPW, ou seja, “Índice de Gosto Pessoal de William” que talvez, quem sabe, seja aprovado pela ONU algum dia. Não vou citar nossa cidade, pois posso parecer tendencioso. Uberlândia é hors concours.

À lista: Morro da Garça (MG), Mansidão (BA), Gameleira de Goiás (GO), Onça de Pitangui (MG), Campo Azul (MG), Vila Flor (RN), Harmonia (RS), Nova Esperança do Sul (RS), Peixe-Boi (PA) e Sossego (PB).Sabem, queridos amigos, o que estas cidades têm em comum? Além de nomes extremamente poéticos, belos e sonoros? Nenhuma delas tem mais do que 25 mil habitantes.

E o mais importante: em nenhuma delas foi registrado nem um homicídio nos últimos três anos segundo o “Mapa da Violência 2013 – Homicídios e Juventude no Brasil”, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, que tem entre seus fundadores expoentes do naipe de Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro, Jorge Werthein, Herbert José de Souza, Elizabeth Fox, Gabriel Cohn e Paulo Bonavides, para citar alguns. Bom de morar é onde se tem paz completa. Onde a porta do alpendre fica aberta dia e noite e todos se chamam pelo nome. É lugar assim que quero para mim, onde o belo vence a cobiça, onde o amor e as amizades valem mais do que o “ter”.

Onde podemos parar as vistas e olhar longe, felizes de poder viver nossos mais profundos sonhos. Descansar a cabeça no ombro da pessoa amada, ternura e paz sem ganância ou competição. Instituto algum, com suas metodologias complicadas, equações e planilhas vai saber escolher lugar verdadeiramente bom de viver. Emprestado de Caetano: “E é por isso que eu gosto lá de fora… Porque sei que a falsidade não vigora”.








Publicado Jornal Correio em 14/12/2014





sexta-feira, dezembro 12

40 anos de amizade - 40 years friendship

40 anos de amizade - 40 years  friendship

O tempo judia, estraga/melhora mas a alma de criança vive trancada dentro de cada um de nós. Força saída todo instante. Insistimos em mantê-la presa, tristonha de brilho e luz. Esses três ai nas fotos mostram o resultado de deixar esse lado de permitir moleque sempre solto, livre como passarinho, livre como vento, livre com poeira de estrela.

Quarenta anos, quarenta anos, de verdadeira amizade pura e verdadeira. Encontros poucos mas quando acontecem são intensos como explosões de uma super nova - hecatombe . Sempre presente a sensação que ontem foi que nos encontramos pela última vez. Cada um mora dentro do outro, em prova verdadeira de que amor fraternal existe.












segunda-feira, dezembro 8

Fim da picada




Final dos tempos. Leio matéria que aqui transcrevo pedacinho: “Motoristas de várias localidades venezuelanas reclamam de dificuldades para abastecer seus carros, apesar de a Venezuela ser um país produtor de petróleo e derivados.” Se em um dos maiores produtores de petróleo do mundo falta gasolina e diesel, imagina o que sobra para o resto do mundo.

Tudo bem, não é a primeira vez que campeões em alguma coisa sentem escassez na pele de algum produto; vejamos o Brasil, o país do futebol (sic). Faltou futebol geral na última copa – a pá de cal foi um 7 a 1 contra a Alemanha que por dó não quis humilhar mais país anfitrião.

Explicar ou reforço a utilização do tal sic que vemos por toda parte. Se até bem pouco tempo era empregado apenas para apontar algum erro de ortografia ou pontuação, hoje tornou-se um grande companheiro para expressar descontentamento e discordância total de alguma afirmação. Logo o sic lá do alto tem sua razão de ser, pois nossa seleção ocupa a ridícula sexta posição no ranking da FIFA, abaixo até da recentemente “freguesa” de carteirinha Colômbia. De “Los hermanos” não vou nem falar, além de Papa eles possuem e ostentam um glorioso segundo lugar na mesma tabela.

Não sou nenhum Camargo Neto quando se trata de futebol, mas como diz a cartomante, as cartas e os números não mentem jamais – outro sic aqui; manipular números para o bem ou para o mal é corriqueiro. Trapaça com algarismos sejam eles áureos, atômicos, quânticos, completos, primos ou nem parentes, existe desde quando surgiram há mais de 30.000 anos, e tome evolução tanto das formas de contar quanto das maracutaias. Hoje podemos contar com a simplicidade de dois, apenas dois números, o zero e o um. Com este mágico código binário pode-se surrupiar bilhões, falsear relatórios e até realizar o não feito.

Falta combustível na Venezuela, futebol no Brasil. A seguir tendência logo não teremos Coca-Cola nos Estados Unidos, cerveja na Alemanha, sushi no Japão. Pizza na Itália será vendida na clandestinidade, perfume na França só importado do Paraguai.

Se pararmos para escutar com atenção vamos perceber que o mundo passa por uma turbulência generalizada. Os motivos vários, quase sempre com a mão humana a atrapalhar. Talvez alguns disparos de energia cósmica estejam interferindo na ordem natural das coisas.

Agora temos um satélite por nome sugestivo de Rosetta que desovou o módulo Philae para se agarrar como carrapato ao cometa Churyumov-Gerasimenko, nome que lembra banda de rock, e que custou a “bagatela” de 1,4 bilhão de euros. Recursos desta monta, seriam suficientes para resolver a fome no planeta, descobrir a cura e/ou vacina contra Ebola, AIDS, malária, a cura do câncer, Alzheimer e tantos outros tormentos. Mas não. Toda essa grana foi literalmente para o espaço.

Fica a pergunta das perguntas para tão árduos tempos, o inferno astral da humanidade: Será que os escoceses, passarão a tomar whisky importado?
Pois é, tem dia que de noite é assim. Final dos tempos.





Publicado  Jornal Correio em 7 de dezembro 2015





segunda-feira, dezembro 1

Fado


Inspirado em entrevista ao Jornal Correio da 
Prof ª  Drª   Ana Maria Bonetti dias atrás.

Um belo dia, o mundo amanheceu um pouco mais silencioso. Não que os carros ou as indústrias tivessem suas máquinas desligadas, transformando as cidades em um longo e duradouro domingo à tarde. Era um silêncio diferente e notado por poucos. Os que lotavam pontos de ônibus para, em amarga tristeza, irem trabalhar, nada notaram de diferente. A rotina, a bovina passividade de sair de casa diariamente para se fazer o que não gosta, os impedia de atentar para assuntos que não fossem a complicada tarefa de sobreviver. Nas cidades maiores, onde os metrôs ziguezagueiam como imensas cobras cegas no subsolo, menos ainda. Tudo anormal como sempre. Desumana repetitiva jornada de vida. Vazio só.


Mas algo estava diferente e poucos sabiam do grande risco que corriam. Porém, o que importa? No campo, nas matas, nos cerrados, o constrangedor silêncio foi percebido de pronto. Faltava alguma coisa. Bichos e homens da lida campestre sentiram algo estranho, indefinido. O moço a carpir lavoura começou cedo. Mal o sol deu as caras encalorado, a atenção foi aguçada. Falta alguma coisa, mas o quê? Apoiado no cabo de guatambu da enxada punha reparo, observava. Muito estranho. Passarinho diferente não era, conhecia todos. Vento também não. Soprava manso e ainda fresco, secando a noite que se foi.
Continuou trabalho. Cisma danada que atormenta!

Hora da merenda, mulher chega com marmita. Trocaram olhares preocupados.
— Também está percebendo?
—Tô, respondeu olhando o chão arado.
— Me conta pelo amor de Nossa Senhora. Tá sentindo o quê?
— Um aperto no peito e na boca do estômago.
— Eu também.
— Mas tem coisa aí, que mais tá sentindo?
— Um vazio. Vazio no tempo, vazio no ar. Sei explicar não. Mas tô gostando não.

A mulher se foi e ele, sozinho novamente. Tomou rumo da mata perto da nascente do córrego. Encheu a cabaça de água fresca e descalçou as botinas. Enfiou os pés na água fresca e se pôs a olhar em volta. Tinha que ficar atento, pois ali tinha colmeia gigante da qual, vez ou outra, colhia boa lata de mel. Deu uma espiada para o lado dela. Só não caiu porque já estava sentado. Não havia abelha, uma sequer. Os favos pendiam em branca cera e as formigas carregavam afoitas as larvas ainda vivas.

As abelhas! Falta o zumbido das abelhas! Gritou a plenos pulmões. As abelhas tinham partido. Ninguém sabia para onde e nem o motivo. No jornal, deu que sumiram no mundo todo. Era o sinal de que, depois de tanto judiar da terra, chegara a hora de pagar pelo malfeito. Por séculos destruímos e arrancamos a fórceps tudo o que a terra podia nos dar. Cansada, resolveu parar. Era o fim do experimento Terra.

Tardezinha, casal lá na roça, abraçado, sentado em banco perto da represa, olhava entristecido o céu estrelado por demais. Havia milhões de estrelas a mais do que o normal e um caminho de poeira se desenhava partindo daqui para profundo canto do universo. Foi para lá que as abelhas foram. Viraram estrelas e deixaram belo e brilhante rastro de pólen, como presente de despedida. Foram-se em busca de paz. E o mundo, condenado, ficou bem mais triste.






Publicado Jornal Correio em 29/11/2014


Fado