quinta-feira, maio 7

Almoço de domingo



Acostumado a comprar para muitos, erro mão. Agora compro para uma pessoa, eu. Fim de semana saio às compras. Dois, três quilos de linguiça temperada com pimenta e mais um pouco da mansa, sem o ardume, picanha fatiada grossa, prontinha para a grelha, coxa e sobrecoxa de frango, pois, sempre tem (tinha) alguém que não come carne vermelha. Queijo trança para tira gosto. Cerveja com e sem álcool. Carvão, pego na carvoaria saca de 25 kg. Agora sei o tamanho do exagero. Nem lugar para guardar tamanho fardo tenho mais. Ara!

Refrigerante, não. Tiro de ideia. Ninguém toma mais esse veneno. Suco de tomate cai como luva e suco de uva orgânica para os não ao álcool. Passo na feira, tudo para bela salada. Abasteço o carro. Andei pra caramba. Combustível pela hora da morte. Matuto: e se todo mundo parasse de usar carro? Preço despencava, planeta agradecia. Sacudo de leve a cabeça: sonha, Zé!

Chego em casa. Abro porta, aroma de limpeza bate no peito. Ontem teve faxineira. Será que foi ontem mesmo ou há dois dias? Os cheiros da faxina se misturam com meus óleos de laranja, incenso e flores da área externa. Os sinos da felicidade tocam à porta da frente me dando boas- vindas em alegre dançar.
Dou-me conta de que estou totalmente só e que não tem ninguém esperando ou visita marcada. Olho para o porta-malas do carro cheio de sacolas. Alface, curiosa, desponta sobre o tapete de plástico verde parece sorrir em frescor. Reciclável, dizem. Acaba a pressa. Passo a descer as compras lento, separando item por item. Algumas para as travessas de preparo, outras para a geladeira. O meu silêncio é calmo.
Como é cedo, decido sair para minha corrida diária, pois, um pouco de endorfina vai fazer bem. Quinze quilômetros. Chego exaurido, feliz. Ducha gelada e toco preparar almoço.

O temperar tem gosto ácido, cheiros cheiram outra coisa que não o de dar água na boca. Pensamento parece não ter peia. Música faz companhia. Coloco seleção de meu gosto e canto baixinho acompanhando. Acendo churrasqueira em ritual místico. A fumaça te busca em companhia tentando lhe abraçar. Não adianta mudar de lado. Ela vem serpenteando ar a te buscar. Turíbulo. Lavo alface, tomates, pico cebola, asso carne. Esqueço de comer. Perdi vontade, assim, só bem mais tarde, antes de dormir, arrisco beliscar algo. Vivo só, mas envolvido em paz inexplicável. A comida pronta vai me servir durante mais de semana.

“Quem sabe/ O Super Homem/ Venha nos restituir a glória/ Mudando como um Deus/ O curso da história (…), canta Gil” na sucessora das antigas vitrolas. Vou ficar quietinho, esperando tocaia de vida, sem isca, sem chama, “quem sabe ser verão apogeu de primavera”. Passa o dia em calma de templo budista.

Estou seriamente pensando em parar de comer carne vermelha. Aí, faço, então moqueca em panela de barro, temperada com bastante pó de pirlimpimpim das asas da tritagonista da obra de Sir James Matthew “Peter and Wendy”, a linda e meiga Sininho, ou quem sabe, de uma fadinha de verdade que, assim como por encanto, venha para, a quatro mãos, dar gosto ao desgosto Me guardo, me aguardo.





Publicado Jornal Correio em 19 de abril de 2015


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