segunda-feira, julho 27

Yes we C. A. M. !




Amanheceu quarta-feira. O ano 2013. Pode parecer coisa de filme americano, quando o advogado em julgamento caminha lentamente em direção ao  réu,  de costas para testemunha interrogada , pergunta levantando o braço direito, entre seus dedos rodopia uma caneta tinteiro:
─ Onde o senhor estava  dia 23 de julho de 2013 às vinte e cinquenta  da noite e o que fazia ?

Posso quase apostar que poucos que passarem os olhos por estas mal traçadas linhas lembrarão. Puxe da memória, caro leitor, difícil, não é? O engraçado é que nos filmes o interrogado dá detalhes. Queria ter memória assim.
Mas se me perguntarem onde estava e o que estava fazendo nesse dia, posso jurar sobre todos os livros sagrados que saberia dizer.
Conto.
O amanhecer já foi estranho, um friozinho incômodo se fazia mostrar, pelejando para nos deixar mais um pouco sob as cobertas. Mas não dava para dormir, o dia prometia ser longo e arrastado, uma multidão de gente tinha um compromisso à noite e o esperar doía.

Ensimesmado, perdendo conta de quantas vezes olhei para o relógio naquele dia. Nada parecia estar bem. Havia algo diferente no ar e não eram os “aviões de carreira”. Trabalho, almoço, soneca, mas qual que nem cochilo. Em dia de 220 horas finalmente anoiteceu, era pouco para a ansiedade de que dar 9 e tanto e esta não chegava.
Que vontade de estar em minha Belo Horizonte natal, enfrentado o caótico trânsito da Avenida Antônio Carlos a caminho de nossa casa na Pampulha: o imponente Mineirão. A Galoucura se fazia ouvir “O Mineirão é nosso!”

Final da Libertadores. A coisa, nossa situação não era das melhores. Espaço pouco resumo. Primeiro tempo de arrancar cabelo. Nada de gol.
Primeiro minutinho do segundo tempo, Jô! Esperança reacende, jogo suado e sofrido como tudo na vida de um bom atleticano e só aos 40 e poucos do segundo tempo Leonardo Silva emplaca dois a zero. Prorrogação de garra, mas deu em nada, levamos para os pênaltis. E pensar que tudo começou com o pé abençoado de Victor ao defender chute perfeito de Riascos em pênalti contra o Tijuana . Não, nada podia dar errado, não agora pô!

Miranda do Olímpia de cara perdeu sua cobrança.
Alecsandor, Guilherme, Jô e Leonardo Silva deixaram suas marcas, o Mineirão tremia. Gimenez se deu mal e mais uma vez a estrela de “São Victor” brilhou como super nova e garantiu o título continental Galo Campeão da Libertadores de 2013! Me desculpe Giafrancesco Guarnieri mas “O grito parado no ar” ecoou por toda Minas, desceu das montanhas, invadiu as Gerais navegando por rios e córregos, desaguou em rincões e sertões adentro a notícia, como revoada de aves migratórias se espalhou ligeira a festa. Estava só começando e eu, meu filho e minha filha, dormimos com sorriso no rosto.

Disse para Pablo, cruzeirense de carteirinha que falar do galo é falar de sol em invernada de Macondo, é levar luz para a caverna mitológica de Platão, era salvar Julieta de Shakespeare mudando final de seu clássico. Ele, gozador, pediu menos poesia, ao que respondi: “Não, amigo celeste, quero mais, a poesia de vestir sempre a camisa 12 alvinegra! Afinal ser Atleticano e como ser mineiro, é um “estado de espírito”. Galo forte Vingador!







Jornal Correio em 27 de Julho de 2015



sexta-feira, julho 24

Domingo na praça









"sussurro sem som onde a gente se lembra que nunca soube."



João Guimarães Rosa 

segunda-feira, julho 20

Camafeu

(Foto: Carlos Nader/GOVSP/Divulgação)

Talvez essa moçada, aqueles que não conheceram bonde – o de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, não vale, que não têm a mínima ideia ou, no máximo, ouviram falar de videocassete, máquina de escrever, monóculo com foto, câmara fotográfica com rolo de filme. E, o que é pior, nunca se deram ao prazer de ler clássico de nossa e da literatura mundial. Esses talvez também não devam ter a mínima ideia do que seja um camafeu.

Camafeu vem de longe, séculos antes de Cristo. Encontrado em escavações arqueológicas, pelo visto, sempre foi um enfeite. A realeza egípcia era vaidosa ao extremo, nunca entendi o motivo de só serem pintados de perfil. Bons em invenções e construtores audazes, eram ruinzinhos em perspectiva. Ou, então, pediam para crianças pintarem tumbas e pirâmides como parte do ensino para se tornarem futuros arquitetos. Se foi assim, enganaram a todos que profanaram seus santuários. Doce deboche.

Geralmente, camafeus são feitos em pedra preciosa, trazem delicada escultura em alto relevo. Já foi pingente, mas nossas avós os usavam em seus xales, cheirando a água de lavanda, como prendedores. Existem peças maravilhosas em museus mundo afora.

Década de 80. Em jeep emprestado da Secretaria de Estado da Saúde, cinza, capota de lona rasgada, queimando óleo quarenta, ao passarmos pela então tranquila praça Tubal Vilela, avistamos sujeito vendendo filhote de tamanduá, assim na cara dura. Naquela época, as leis de proteção de fauna, se existiam, ninguém dava a menor bola. Pedi para parar o projeto de sucata e desci cuspindo fogo pelas ventas. Dei uma danada de uma bronca no sujeito. Aí, me contou que matou a mãe para comer e queria vender o filhote, tinha família com fome, vinha de um longe Nordeste. Bateu-me uma vergonha sem tamanho, miséria levou aquele homem a um ato que para ele era normal, só queria, como qualquer um, sobreviver e salvar os seus.

Comprei o bichinho, ganhei um problema. Como todo bom tamanduá miúdo, acostumado estava em ficar agarrado com a mãe. Não deu outra. Já no pegar, o pequenino se agarrou a mim em busca de proteção, carinho e calor. Aninhou mesmo. Adotamos o tamanduá e passamos a revezar no carregar e alimentar. Tereza, colega de trabalho, batizou-o de Camafeu, que ficou conosco muito tempo, cresceu forte, às vezes, gripava, e não tinha cerimônia em correr aquela língua gelada em quem o pegasse no colo.

Dia chegou de deixá-lo ganhar mundo. Debaixo de tempestade de choro das meninas e muito nó na garganta e falta de coragem de verter lágrimas, nós entregamos Camafeu para a Florestal, esta seguramente o soltou em local apropriado. Hoje, já deve ser avó ou avô, tanto trato e nunca olhamos se era macho ou fêmea.

Quanto à máquina, a minha é uma Remington, não o revólver ou rifle, é de escrever, sabendo que palavras são bem mais poderosas do que armas, para não perder a chance de usar um lugar-comum. Vi charge genial onde o pai escrevia em uma máquina e o filho, tipo geração Y, observava fascinado. Eufórico disse: “Pai, que doido, esta máquina é tudo de bom, é só escrever que ela já imprime!”

Sinal dos tempos…






Jornal Correio 19/07/2015



 Camafeu

segunda-feira, julho 13

Cafubira





E o balão vai subindo, vem caindo a garoa/ O céu é tão lindo e a noite é tão boa/ São João, São João!/ Acende a fogueira no meu coração!
Canto outra:
Capelinha de Melão é de São João/ É de Cravo é de Rosa é de Manjericão/ São João está dormindo/ Não acorda não !/ Acordai, acordai, acordai, João!

Agora, querido amigo... Quantas vezes nos últimos anos ouviu estas cantigas em alguma festa junina? Sei, nenhuma, não é?

O dia 24 deste ano foi o mais silencioso do ano, não se ouviu foguetório de alvorecer, nem vi nas ruas as pequenas fogueiras tão comuns. E olha que caiu numa sexta-feira, dia de relaxar e festar.
A única festa perto de autenticamente São João de que consegui participar foi em um Centro de Formação, tudo muito organizado, crianças dançando quadrilha, correio elegante, canjica e quentão. Pescaria, pipoca, pé de moleque. Claro, não faltou o horror de música sertaneja universitária e show lindo por sinal, de uma intercambista canadense que cantou em voz idêntica a Whitney Houston, dentre outras My Heart Will Go On – aquela da trilha sonora do filme Titanic.
Traques, espanta brotinhos, cheiro de pólvora no ar. Mas nada de tradição junina na essência.

Junho se foi em silêncio, sexta 24 não teve missa para o Santo regente na catedral.
Esqueci de mencionar Santo Antônio. Será que vela foi acessa pedindo casamento ou hoje se busca par pelo Face tão somente?
De São Pedro, coitado, o ultimo do calendário, nem notícias.

Entra Julho começam as festas, vai entender.
Lá vou eu visitar festa “julhina”.
Me deu a impressão de feira gastronômica. Tudo muito organizado mas o foco era comer e beber. Filas e mais filas. Imensas filas. O quentão quase vira “frião” e cachorro quente torna-se “cold dog”.
Foi me dando uma cafubira lascada.

Começa com um bater de pés involuntário e incontrolável, ganham vida própria e sapateiam sem parar, não adianta tentar segurar o joelho, a impulsão é mais forte do que a gente. Sobe então para as pernas que, num desajeito incompreensível destampam a bater joelho com joelho se estiver sentado, se estiver em pé a sensação que cada perna quer tomar um rumo. Sobe para a boca do estômago, um aperto que só chega a um peito arfante e para na garganta em nó. Aí seu moço, dona moça, dá uma nervura de passarinho engaiolado a bater bico em tela de arame até sangrar e, deságua em sapituca da braba, um endoidecer de filha de Sorôco, de Rosa, “enfeitada de disparates”. Assim me sentia naquela noite de festa São João.
Tudo isso ao som de uma desarranjada “dupla de dois” sertanejos universitários, eita povo que não gradua nunca! Peixes fora d’água, não era local nem hora. Vazei depressinha.

Volto no domingo para almoço. Redenção total. Música boa, de um bom forró nordestino lá onde São João é reverenciado com paixão e fé mês inteiro. As vaidades desfilantes da noite foram deixadas em casa e as pessoas mostravam a simplicidade que tanto pregava o dono da festa. Passei tarde iluminada e feliz. Volto ano que vem, de dia.
Cafubira passou, é assim do jeito que vem, vai.
"São João acende a fogueira de meu coração".










Publicado Jornal Correio em 13 de julho de 2015





segunda-feira, julho 6

Trinta e cinco

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Festa grande, churrasco animado. Não era para menos, estávamos comemorando trinta e cinco anos de formados, Medicina Veterinária – turma de 1980 da nossa Federal de Uberlândia. Claro, nem metade da turma compareceu, mas quem veio apesar do passar de tantos anos continuava barulhento para mais de metro. Parecia multidão. Sexta um Happy hour que foi tudo de happy e pouco de hour, durou horas a fio, noite adentro.

Bom encontrar gente sumida, cada um em canto desse Brasil gigante, roncando é fato, mas deitado em berço esplêndido. Domingo um fantástico churrasco na fazenda de Knychala, onde com fidalguia fomos recebidos. Alugamos van para não preocupar com volta e prováveis excessos. Quase todos com as famílias, minha filha apareceu depois. Acostumada a dirigir na roça, em um pulo chegou para as bandas do Cruzeiro dos Peixotos. Passou direto pois não tem placa indicatória, mas percebeu antes de chegar em Martinésia, virou ligeira. Como não bebe, quando dirige, minha carona de volta estava garantida.

Conheço meu povo veterinário, sair seria um custo, ninguém ia deixar. Saída à francesa lá pelas tantas. Lud filha do compadre Temporal deu um show com o berrante, para amaciá-lo uma dose de conhaque chifre adentro para afinar, pouco uso. Pouco nos chamamos por nome, os apelidos cruzaram os anos, ilesos. Ju, Zé da Bola, Fubá, Carteiro, Gatão, Goiaba, Joinha, Bafo, Barrica, só para citar alguns. Todos com uma história escondida atrás da alcunha. Daria livro, quem sabe um dia?

Berrante afinado a conhaque lá se vai a tocar, relembrando modas e abraços, cantoria. Saudade sendo curada. Regozijo. 

Fim de festa, noite alta. Promessa e trato de novo encontro, agora anual. Próximo será na casa de Carteiro, interior de São Paulo.

Na noturna arrumação do que restou da nossa bagunça, óculos esquecidos, chapéu em um canto, botinas e camisetas foram recolhidas. O berrante voltou para a parede da sala da sede.

Brisa fria cortante da madrugada entrava por fresta de janela entreaberta, embalava sono das criaturas. Cortina batia leve. Uma golfada mais forte e o berrante tombou de lado no gancho. Cabeça doendo de ressaca, abriu um olho e tentou firmar as vistas. Meu Jesus, nunca na vida tinham enviado goela abaixo tanta bebida. A garganta ardia em brasa, tossiu forte, mugido descompassado saiu de sua bocarra. Luzes acenderam no alto da escada, fingiu dormir. Alguém desceu, olhou tudo, fechou a teimosa janela. Luzes se aquietaram. O berrante arriscou uma vista. Recompôs-se na alça de couro curtido por tanto uso em cabeça de arreio e costas de peão.

Cabeça ainda doía um pouco. Já recomposto e sem vergonha que só, foi manso no toque até acordar sua paixão, a viola. Estavam de flerte há muito tempo, mas ela orgulhosa, não soltava acorde fácil ao galanteador. Ele nunca perdeu a esperança e sabia que dia mais, dia menos iriam tocar juntos em festa de núpcias. Cavaquinhos e cornetinhas para criar, seriam felizes para frente. Enquanto isso só restava ao imenso chifre artista cantar para sua amada viola “Vê, ali está/ O meu berrante no mourão do ipê/
Vou cuidar melhor/ Porque foi ele que me deu você.”
Chora Zé Fortuna e Pitangueira !








Publicado Jornal Correio em 5 de julho de 2015