segunda-feira, agosto 3

Cantada




Adoro rádio. Nada melhor para dormir do que um rádio à válvula, daqueles que custam a esquentar e ficam zumbido em estática o tempo todo. Ganhei um assim do grande amigo Júlio Penna. Este, sim, entende de rádio, tem dezenas. Fuça, busca peça, conserta, ajeita e os deixa prontos para quem gosta de viajar nas ondas longas, médias, curtas e frequência modulada. O presente apresentou um pequeno problema ao regular volume e ele o levou para arrumar.

Alguns preferem som remasterizado, livre de ruídos e outros atrapalhos. Particularmente, os tais atrapalhos é que me fascinam.

Ouvir uma Nina Simone em um ensaio em plena Nova York e, ao fundo, ouve-se o telefone tocar, carros buzinam lá fora. Quem ligou em pleno ensaio? Algum diretor de teatro da Broadway? Um restaurante na 150 West 57th Street? O Russian Tea Room, por exemplo, confirmando reservas? Ou simples nightclub onde ela poderia soltar a voz e beber em paz? E as buzinas, qual a marca dos carro? Um tradicional Ford preto? Um Oldsmobile imponente? E a causa de tanta aflição? Mulher em trabalho de parto, alguém ferido a bala por algum gangster? Ou simples impaciência com um trânsito já caótico da Grande Maçã nos distantes anos 30 do século passado?

Tudo isso e muito mais se pode criar com a cabeça no travesseiro, ouvindo rádios e suas estáticas. São viagens infinitas a cada mexida no seletor de estação.

Antes de ganhar joia rara de Júlio, comprei um rádio moderninho. Não queria aqueles que tocam CD, queria um rádio e pronto. Na pressa, levei para casa o bicho.

Para meu espanto, o danado só toca rádio FM, nem AM tem. Uma tristeza. Tive que me conter com o danado.
Achar estação do agrado à noite é que era complicado. Ou era rádio de igreja exaltando pecados e castigos aos quatro ventos ou era música sertaneja universitária – vai ser chato pra lá. Bom, vai ver que o chato eu sou. Nada de noticiários, nada de preamar, aviso aos navegantes, nada dito em voz suave de locutor tipo Eldorado de São Paulo – “Artes e entretenimento” seu lema. Saudades do “Varig é dona da noite” ou de “Um instrumento dentro da noite”, aqui não pega.

Resignado, me deixei levar, colocando atenção às letras das músicas e se conseguiria me soltar em pensamentos. Dou exemplo de duas estações, sem citar nomes para não magoar ninguém, que tocavam músicas com letras que poderiam parecer cantadas a uma linda mulher. Uma de muito bom gosto tocava um gentil Caetano: “Fonte de mel/ Nos olhos de gueixa/ Kabuki, máscara/ Choque entre o azul/ E o cacho de acácias/ Luz das acácias/ Você é mãe do sol (…) Você é linda/ Mais que demais/ Você é linda sim/ Onda do mar do amor/ Que bateu em mim” e seguia. Outra estação tocava algo assim: “É bonita/ Você sabe que é bonita/ Mas eu sei que é bandida (…) Você com essa cara de santa/ Mas a falsidade é tanta/ Só eu mesmo sei dizer (…)”

Não sabia se ria ou chorava. Me conte você, moça, mas com sinceridade, qual das duas cantadas você gostaria de receber?

Júlio, querido amigo, que falta está fazendo o velho e bom Vintage Crosley anos 50…








Jornal Correi em 2 de agosto de 2015



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