segunda-feira, agosto 17

Sobre o nada




Diz um sábio amigo meu: “para quem não tem nada, metade é o dobro.” Confesso que fiquei muito tempo a imaginar o significado deste nada. Podia ser um nada total, um meio nada, um quase nada com ponta de algo. Hoje, por exemplo, acordei com um nada de escrever, coisa rara. Não que não tivesse vontade, mas não me vinha assunto. Fiquei parado olhando o vazio da folha em branco, hipnotizado pelo nada.

Tinha passado por uma overdose de coisas ruins a semana toda. Algumas me diziam respeito diretamente, outras, ao mundo, da porta para fora. Os noticiários pessimistas, histórias de inflação voltando, economistas nos ensinando como usar nosso rico e suado dinheirinho. O que não devemos fazer para conseguir vencer o mês. Falaram de tudo menos da tal felicidade de se sentir vivo.

Não que ache que a preocupação com finanças domésticas e pátrias não seja de suma importância. Mas nem tudo pode ser definido em cifrões e, muito menos, colocado em escalas e gráficos. Os governos mundiais, assim como as mídias, deviam achar espaço, prioritário e grande, para levar esperança e felicidade às pessoas. Mandatários e as gentes deveriam pôr fim às guerras e abolir vaidades e ambições. Vive-se com pouco. Morre-se e mata-se por menos ainda.

Pois é, cheguei até aqui como náufrago encontra ilha. De repente, uma onda de um azul-turquesa atira corpo desanimado em canto perdido, paradisíaco. Cachoeiras com águas puras e cristalinas, frutas tropicais em abundância, pássaros multicoloridos com seus cantos melodiosos. Riachos repletos de peixes saborosos. Montanhas imensas a proteger de vento sul, bichos de todas as espécies vivendo em harmonia.

Tudo perfeito. Em poucos dias, nosso náufrago se restabelece forte, corado, saciado. Estava feliz com seu, e só seu mundo aprazível. Era um bem-aventurado, nada de contas a pagar no fim do mês, nada de humanos destruindo/poluindo um mundo que longe agora estava. Nada de gritarias, altas falas, tons estridentes, lamúrias e desilusões. Pressa para não perder o capítulo da novela. Não precisa de transporte público, de emprego, de shoppings ou restaurantes.

Nada de música sertaneja, de buzinas de carros, engarrafamentos. Adeus prestações, cartões de crédito, carnê do Baú, sonho com Mega-Sena, fofocas e mentiras. Não mais ter que lidar com ciúmes ou invejas. Pressão doze por oito. Correr 20 km todo dia em praia só sua. Beber água de coco – as paroxítonas terminadas em “o” não se acentuam combinado?

Aí, em outro belo amanhecer, aparece na praia uma linda mulher. Caiu de um navio de cruzeiro, talvez embriagada de solidão. Perfeito demais, roteiro de filme de Hollywood de segunda. Passam a viver juntos e felizes. Por um tempo. Aí, chega uma @#$% de uma cobra e sussurra em seu ouvido: “Come logo essa @#$%& de maçã, pô!”

O mundo vem abaixo. Um dia, ele, em desespero, se atira no mar e dispara a nadar em direção ao sol poente. Sobem as legendas, um imenso “The End” preenche a tela. Nosso náufrago exaurido se apoia em algo vivo e ameaçador, nem se importa, pois vale o dito popular: “para quem está afogando, meu amigo, jacaré é toco.” No mais, Gerais.







Correio de Uberlândia 16 de agosto 2015




 Sobre o nada

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