Entardece manso. Saracuras cantam logo ali no brejo: três potes, três potes, três potes. Bateu um não estar e não ser. Sozinho, subi e desci escada de casa mil vezes, nada lá em cima, embaixo pouco. Sem fome ou vontade de nada, abro e fecho geladeira três, quatro cinco vezes, de lá só o ventinho frio, nem vejo o que tem dentro.
Hora de dormir que não chega. Tento televisão. Não tem uma notícia boa. Música, penso eu, adoro cantos gregorianos, me lavam alma. Não funcionou desta feita. Faço relaxamento sem nunca ter aprendido. Fico em posição bem confortável, desligo música, fecho os olhos e concentro. Quero pensar em um nada. Relaxo os músculos por partes. Dois imensos minutos se passam.
Coça o nariz, finjo que não está acontecendo. A coceira aumenta, não dá! Levo palma da mão esfrego com força. Volta a tentar meditar. Esvazio os pensamentos, os fecho em baia, pois como tropa selvagem não têm costume a prisão. Percebo em algum canto da mente uma superlotação de pensamentos. Se apertam contra a prisão que criei para eles. Rebelados, pedem ajuda, peço calma por alguns minutos. Vai dar confusão pensar sem pensar.
Agora coça a cabeça, o cabelo. Será por isso que os monges são carecas, penso cá com minha solidão? Não deve ser esse o motivo, pois se cabelo não vão ter para coçar imagina o estrago que faria um mosquito ali pousando no ápice de profunda contemplação mental. Tranco mais estes pensamentos em masmorra.
Beleza, consigo soltar os ombros, antevejo a porta para entrar em alfa. Opa, estou no caminho certo. Certo, né!? O telefone fixo toca. Mas não é possível! Atendo sem paciência. Uma gravação pergunta se sou fulano de tal, se for aperte um se não for aperte dois. Tá certo que aperto o dois, bato o telefone com certa força no suporte. Tem base? Agora até cobrança é feita por gravação.
Meu telefone deve ter pertencido a vários estelionatários ou maus pagadores. Todo dia, uma pessoa com um sotaque diferente liga procurando alguém. Para oferecer doce de leite ou prêmio de rifa é que não é. E o pior é que este número é recente, adquiri há poucos meses, poucos o sabem meu. Volta a posição para relaxar. Quase perto de cochilo, a almofada começa a escorregar lentamente. Abro um olho, a coisinha continua escorregando manso. Aprumo. Definitivamente não vou conseguir nada hoje.
Volto à geladeira. Penso em dar uma corrida boa mas meu joelho está pedindo folga a ponto de me fazer perder a bela corrida de revezamento Uberlândia-Romaria. Abro a porta da prisão dos pensamentos, eles chegam como pororoca e se espalham misturados na praia de meu estar. Como quebra-cabeça ou bibliotecário, vou colocando cada um deles em sua devida prateleira, alguns ariscos, tentam me escapar. Passo peia, laço outro longe a se perder. O melhor é deixar passar, respirar fundo, mergulhar em sono repleto de sonhos. Amanhã, tudo estará novamente no lugar.
E as saracuras, agora, em maior número engrossam coro melancólico e, pelo que sei, partem para festa no céu, quebrei três potes, três potes, três potes, com um coco só, um coco só, um coco só.
Jornal Correio em 09 de agosto 2015
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