segunda-feira, outubro 26

Happy hour



Tenho um sentimento de dor e alegria quando boto reparo em artistas da noite. Músicos, cantores lutando para sobreviver e tendo de se expor a situações, para mim, constrangedoras. O pessoal lá dando sangue em seu trabalho e a plateia… Disse plateia? Pessoal do bar, do clube ou seja lá onde for, pouco se lixando para o que toca. Ao fim de cada música, uma ou duas pessoas batem palmas tímidas.

Outro dia, em um happy hour desses por aí, ouvi de um violonista muito bom um agradecimento inusitado e bem-humorado:
– As palmas são poucas, mas sinceras, diz filósofo chinês Ping Pong Pung.

Achei perfeito. Mesmo assim, os pedidos de músicas não param de chegar, seja por grito de algum bebum, seja pelo antigo papelzinho levado pelo garçom. Os caras são heróis. Rendo aqui minha homenagem a todos os artistas da noite. Vocês, são guerreiros.

Aproveito e reconto caso que há muito tempo ouvi. Noite alta, madrugada querendo descansar em bocejo comprido silencioso, só esperando sol dar as caras. Entre prédios da cidade grande o amanhecer demora mais um pouco, a linha do horizonte já não se delimita por montanhas, mar em beijo de bom-dia com as luzes do alvorecer.

Em ambiente assim tomado de fumaça, mesas empilhadas, garçons já sem suas roupas de trabalho aguardam pacientemente, escorados em balcão de couro, um último freguês. Ali jamais amanhecia. Conhecido da casa, não podia ser enxotado. Ao piano desgastado pelo tempo, mas muito bem afinado, tocava de olhos fechados em longo cochilo. Anos na noite o ensinaram esse maravilhoso truque. Sob a madeira repleta de manchas de copos, quieto sem gelo, produzindo pequenas ondas circulares no amarelo ouro da bebida a cada nota mais forte, uma dose generosa de uísque.

O músico de olheiras fundas, paletó jogado a canto e gravata com nó desatado, atendia um a um os pedidos do incansável ébrio cliente. De sua mesa, observava com a atenção que ainda lhe sobrava o vazio salão. A cada fim de música, batia frenéticas palmas e gritava a plenos pulmões: “Bravo!” E seguia, “toca aquela”. Pianista agradecia mecanicamente, com um suave balançar de cabeça e gentilmente, atendia pedido. Gorjeta polpuda, e sabia disso.

Hora, do nada, um macaquinho apareceu entre as mesas, subiu no piano e cuidadosamente subiu no copo de uísque, molhou o rabo e correu para longe. Pianista nada percebeu, já o cliente, em susto, quase caiu da cadeira, esfregou com força os olhos pensando estar louco. A cena se repetiu duas, três vezes. Coração aos pulos, levantou cambaleante e derrubando cadeiras empilhadas chegou ao piano e sussurrou ao ouvido do velho músico:
– Escuta, o macaquinho molhou o rabo em seu uísque.

Este parou um pouco, como a decifrar o lhe foi dito. Do nada e em espanto de olhos agora bem abertos de conhecedor de tudo que se toca na noite, bateu a não no teclado e quase em gaguejo respondeu:
– Caraca meu, esta eu não conheço, mas faz o lá-lá-lá que eu te acompanho.

Não sei o motivo, mas me veio à cabeça Humphrey Bogart, genial, interpretando Rick Blaine em “Casablanca”. Disse ou não disse?
– Play it again, Sam!






Jornal Correio em 25 de outubro de 2015



Happy hour

segunda-feira, outubro 19

Zumbido



Menino novo antenado com as tecnologias. Esforçado na escola, aluno de Veterinária na Federal de Uberlândia, um dos dez mais conceituados no País. Vida seguia calma e sem atropelos. Um sobressalto matutino mudaria o correr de riacho entre veredas sombreadas, onde o som mais alto que se fazia ouvir era o pulo da cachoeirinha batendo em poço largo e fundo, onde a bicharada estava acostumada a se refrescar e molhar pelos e penas.

Em susto, coração disparado, sentou-se ligeiro, de olhos arregalados na cama. Vozes, milhares delas começaram a conversar dentro de sua cabeça. Sacudiu, bateu a palma da mão aberta na testa por várias vezes e nada. As vozes agora cantavam um sertanejo universitário, talvez o sabendo ser ele estudante de Veterinária, em um querer lhe agradar. Sua vida dali para frente virou um tormento. Dia e noite eram músicas sobre músicas. No começo, lhe apraziam, pois faziam seu gosto musical, mas a repetição sem fim foi lhe cansando, levando-o à exaustão.

Não contou para ninguém sobre o martírio por medo de lhe considerarem louco. Mas as mudanças físicas, de tão visíveis, chamaram a atenção de seus pais. Sorte sua não morar em república como em nosso tempo, pois, se assim fosse, a chance de alguém notar seria mínima. E só em tempo de férias ou feriado prolongado, em casa, atinariam que algo não estava certo.

Se antes falava manso, seu tom de voz agora era outro. Vociferava na tentativa de vencer aquele suplicio musical. Passou a ter sérias dificuldades de aprendizado e relacionamento, escondia-as do mundo em canto escuro de quarto num balançar de corpo frenético. Sofria.

Não atendia os telefonemas de namorada nem dos colegas e faltava às aulas com frequência preocupando a todos. A família se pôs atenta e mesmo contra a vontade do nosso rapaz, conseguiu convencê-lo a duras penas a procurar ajuda médica.

Acompanhado de pai e mãe pegaram rumo ao recurso. Psiquiatra, mãe?! Ah não, vocês também estão achando que fiquei doido? Calma, filho, vai dar tudo certo! Ela, carinhosamente, lhe afagava os cabelos. O pai, solidário, não largava ombro do filho em carinhoso abraço. Sala de espera. Horror dos horrores, tempo não passa. Daí, talvez, acho que já disse isso, venha o nome paciente. Pois haja a bendita.

Finalmente chamados, entraram os três, pois sozinho ele ia não. Exame clínico ligeiro, passou a inquiri-lo com jeito sereno dos especialistas.
— Tem tempo que vem ouvindo estas vozes, estes cantos?
— Pelo amor de Deus, doutor, será que me tornei esquizofrênico? Li muito sobre isso.
— Calma. Mas me diga, tem algum momento que as vozes cessam?
— Bom, quando tomo banho elas me dão sossego, dai penso em só ficar debaixo do chuveiro.

Olhando de um lado para outro cabreiro sussurrou:
— Acho que elas tem medo de água. Pode ser doutor?
— Só no chuveiro elas somem?
— Não. Outro dia resolvi pular na piscina para testar o medo delas e não me acompanharam.
— Tudo bem, mas vamos fazer o seguinte, para continuar nossa conversa será que dá para você tirar esses malditos fones de ouvidos os quais só tira para tomar banho e nadar!?







Jornal Correio 18 de outubro 2015




Zumbido

terça-feira, outubro 13

Imposto



Já perceberam que certas coisas em nossas vidas empurramos com a barriga até não ter saída? Vamos postergando, inventado desculpas para não fazer algo que sabemos que vamos depender dela. Recentemente, passei por uma dessas. Carteira de habilitação a vencer. Diferente da maioria dos brasileiros, segundo pesquisas, ando na contramão do gosto popular. Dizem que o homem “patropi” gosta mais de carro do que de gente. Dedica aos bólidos carinhos e mimos, às vezes, nunca dispensados a pessoas amadas.

É da natureza, está na genética. Quantas e quantas vezes em prosas ouvi queixas e até choros de homens barbados motivados por um arranhão na pintura do carro. Do jeito descrito parecia que haviam rasgado carro com abridor de lata. Todos em uníssono, “hoooo” de pavor, se levantam e vão lá ver o estrago. Cada um com seu olhar clínico de especialista em lesões a autos. Tanta gente em torno da lataria avariada que fiquei do outro lado sem nada ver. Os comentários ultrapassam o limite da sensatez:
— Um cara que faz uma coisa desta merece prisão perpétua — diz um aos berros.

Outro:
— Se pego o responsável por uma sacanagem deste tamanho esfolava vivo.

Inconformados voltam para a mesa do bar, sei que até o fim da noite só vão falar e beber em luto.

Agora, sozinho junto ao carro, resolvo dar uma olhada no estrago. Chego, olho, reparo, chego mais perto, coloco os óculos, quase encosto o rosto para tentar achar algo que merecesse tamanha revolta. Depois de muito procurar, acho um arranhãozinho do tamanho de beiço de pulga, em canto perto da porta. Perco a paciência. E tento lembrar ao dono do carro que sua esposa está no hospital operada da vesícula! Despeço de turma, sigo a pé.

Nunca fui dado ao ato de dirigir e nunca me apeguei muito a carros. Coisas inanimadas nunca me chamaram muita atenção. Nessas, CNH vencendo, lá vou ver o que fazer mas sem muita pressa. Fico sabendo que tenho que fazer um tal curso de renovação, um tantão de horas de aula com a confirmação digital de presença. Fiz mesma coisa que qualquer um faria, e aí não fujo das estatísticas: Reclamar! Somos mestres nisso e péssimos em atitudes. Mais um jeito de arrancar dinheiro, absurdo, desaforo e por aí afora. Tudo que nos é imposto é motivo de esperneio. Claro, quando vemos o tanto de impostos que nos são impostos é de arrancar os cabelos mesmo, principalmente, quando não percebemos retorno na utilização dos tributos.

Sem choro nem vela, fui lá eu a fazer o tal curso. Resmungando, com cara de poucos amigos, depois de anos me vi sentado em cadeira de sala de aula como aluno. Não foi meu espanto que, logo na primeira aula, comecei a gostar! Obra e arte do instrutor, dono de uma didática e técnicas de motivação natas. Surpreendentemente, não vi o tempo passar e podem apostar, aprendi coisas que jamais acreditava que existissem no trato com o trânsito.

É fato que não vou tomar gosto por dirigir, mas ao fazê-lo daqui em diante terei outros olhares ao que me cerca. Peguei a mão certa e não ultrapassarei jamais meus limites. Sinal verde. Sigo.







Jornal Correio em 11/10/2015




Imposto





segunda-feira, outubro 5

Besouro


Juro que foi sem querer. Foi instinto de pura defesa. Como de costume, distraído estava olhando o nada. Aliás, quanta coisa tem o nada. Lembra movimento de calçadão de cidade grande, enxame de abelha jataí quando pronta a levantar voo e seguir para outra colmeia formar, parece, às vezes, trilheiro de formiga-correição, mas com a vantagem de não ter, nem fazer barulho, só um, o bater de ferrão que mais parece crepitar de fogo. Ou, no caso de nossas abelhas nativas, um zumbido de nota só, acertando temperatura da morada.

O nada está sempre cheio daquilo que você quiser. Coisas boas, coisas ruins, alegrias e medos moram ali no nada. Aquilo que você quer ser muito no nada habita. Aquilo que te apavora se tornar também ali reside Para apreciar esse canto do pensamento tem que ter juízo e aprendizado, senão endoida. Dizem que os loucos riem ou choram sofrido fácil. Verdade é que eles, sem treino ou guia, descobriram o caminho, a porta do nada. Entram e não saem mais. Um perigo. Bom lugar para se esconder, mas não abuse, deixe caminho de volta bem sinalizado

Ah, e desconfie sempre quando perguntar a alguém o que ela tem e como resposta receber um vazio “Nada”! Aí, geralmente tem muita coisa oculta doída. Dor, geralmente, muita dor. Pois lá estava olhando tempo quando vulto bitelo veio em alvoroço em minha direção. Foi nada não. No reflexo levei a mão e com tapa joguei longe. Escutei o barulho seco/zumbinsento quicar no chão e rolar feito bola de gude negra. Parou rente à parede. Encostadinho no rodapé.
Saí do transe de pensamento vazio e corri rápidos olhos para acompanhar meu desacerto e a acrobacia do bicho. Besouro grande, mal-humorado que só. Resmunguento como todo besouro com voo interrompido a tapa ou bocada de sapo. Deitei de pulo rente ao chão para acompanhar a ginástica do casquento tentando se aprumar.

Debatia patas em pedaladas ao ar. De suas costas abria uma parte de suas asas dobradas em canivete em seu elítrio para dar impulso. Dei-lhe ligeiro peteleco, o que o fez cair em pernas. Antenas a brandir como se dedos em riste fossem, tonto, mas valente a me reprimir tamanha violência sem sentido se é que alguma violência sentido tem.

Evolução, às vezes, deve fazer rascunho. Besouro não foi feito para voar. Tem tudo contra ele, inclusive a física, mas teimou, pois do chão saiu um Santos Dumont ou um autêntico Wright dos coleópteros. A história que resolva este imbróglio. É certo que seu voar não é muito coordenado, mas se faz deslocar, mesmo que seja para lugar perigoso. Poucos devem acertar grama serenada e companheira perto, para então juntar trapinhos e construir toca e prole.

Por esse agora tinha responsabilidade, causei-lhe permanente intratável labirintite. Preparo canto de jardim ou vaso grande para que, no tocar de roda, não despenque ou tente novo flutuar, o que seria desastroso. Se alguém souber de besoura desempedida, mande sinais. Meu aturdido amigo carece casar, mas não tem dinheiro nem um centavo na caixinha vi e ele vive literalmente tonto.






Jornal Correio em  4 de outubro de 2015




Besouro