segunda-feira, outubro 5

Besouro


Juro que foi sem querer. Foi instinto de pura defesa. Como de costume, distraído estava olhando o nada. Aliás, quanta coisa tem o nada. Lembra movimento de calçadão de cidade grande, enxame de abelha jataí quando pronta a levantar voo e seguir para outra colmeia formar, parece, às vezes, trilheiro de formiga-correição, mas com a vantagem de não ter, nem fazer barulho, só um, o bater de ferrão que mais parece crepitar de fogo. Ou, no caso de nossas abelhas nativas, um zumbido de nota só, acertando temperatura da morada.

O nada está sempre cheio daquilo que você quiser. Coisas boas, coisas ruins, alegrias e medos moram ali no nada. Aquilo que você quer ser muito no nada habita. Aquilo que te apavora se tornar também ali reside Para apreciar esse canto do pensamento tem que ter juízo e aprendizado, senão endoida. Dizem que os loucos riem ou choram sofrido fácil. Verdade é que eles, sem treino ou guia, descobriram o caminho, a porta do nada. Entram e não saem mais. Um perigo. Bom lugar para se esconder, mas não abuse, deixe caminho de volta bem sinalizado

Ah, e desconfie sempre quando perguntar a alguém o que ela tem e como resposta receber um vazio “Nada”! Aí, geralmente tem muita coisa oculta doída. Dor, geralmente, muita dor. Pois lá estava olhando tempo quando vulto bitelo veio em alvoroço em minha direção. Foi nada não. No reflexo levei a mão e com tapa joguei longe. Escutei o barulho seco/zumbinsento quicar no chão e rolar feito bola de gude negra. Parou rente à parede. Encostadinho no rodapé.
Saí do transe de pensamento vazio e corri rápidos olhos para acompanhar meu desacerto e a acrobacia do bicho. Besouro grande, mal-humorado que só. Resmunguento como todo besouro com voo interrompido a tapa ou bocada de sapo. Deitei de pulo rente ao chão para acompanhar a ginástica do casquento tentando se aprumar.

Debatia patas em pedaladas ao ar. De suas costas abria uma parte de suas asas dobradas em canivete em seu elítrio para dar impulso. Dei-lhe ligeiro peteleco, o que o fez cair em pernas. Antenas a brandir como se dedos em riste fossem, tonto, mas valente a me reprimir tamanha violência sem sentido se é que alguma violência sentido tem.

Evolução, às vezes, deve fazer rascunho. Besouro não foi feito para voar. Tem tudo contra ele, inclusive a física, mas teimou, pois do chão saiu um Santos Dumont ou um autêntico Wright dos coleópteros. A história que resolva este imbróglio. É certo que seu voar não é muito coordenado, mas se faz deslocar, mesmo que seja para lugar perigoso. Poucos devem acertar grama serenada e companheira perto, para então juntar trapinhos e construir toca e prole.

Por esse agora tinha responsabilidade, causei-lhe permanente intratável labirintite. Preparo canto de jardim ou vaso grande para que, no tocar de roda, não despenque ou tente novo flutuar, o que seria desastroso. Se alguém souber de besoura desempedida, mande sinais. Meu aturdido amigo carece casar, mas não tem dinheiro nem um centavo na caixinha vi e ele vive literalmente tonto.






Jornal Correio em  4 de outubro de 2015




Besouro

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