segunda-feira, agosto 29

Domingo





“O soldado, no forte:
-Capitão, capitão, os índios estão vindo!!
– E são amigos ou inimigos?
– Devem ser amigos, porque estão todos juntos…
– E quantos são?
– Acho que uns mil e três.
– Como assim?
– Vêm três na frente e uns mil atrás…”



Bom dia, gente do bem. Nada como começar um domingo com uma boa risada, um sorriso que seja. A história aí no alto contado por amigo, pode ser ótimo desjejum. Até outro dia, achava domingo o pior dia da semana, principalmente, seu final de tarde. A expectativa da chegada de uma segunda-feira era terrível.

Já notaram que os sons, ou a falta de alguns, caracterizam muito bem um domingo? Explico. Amanhece domingo. Muitos acordam bem mais tarde, ressaca de sábado, noitada foi boa. Festa, show, serenata, pouco provável hoje em dia, assim como madrugar na porta da padaria para desfrutar da primeira fornada de pão quentinho com manteiga, existe mais não, aqui não.

O domingo amanheceu, quem ficou na cama perdeu metade do dia. Outros levantam cedo, juntam a tralha toda para clube, rua, pastel na feira, missa. Correr, caminhar, passear. Sentar na praça, deixar a manhã passar mansa em sua preguiça. Impossível ficar em casa em um domingo, a não ser quando há almoço com amigos ou família. A cozinha começa mais cedo, toca a preparar fartura. Cheiro de carvão no ar, churrasco anunciado.

Dia de bermuda e camiseta. Finalmente a pele do corpo vê o mundo. Os parques estão cheios.
Os sons. Somem os barulhentos carros e motos, é domingo. Se você mora perto de rua ou avenida movimentada e tem sono leve, imagino que teve que aguentar até altas horas o rugido e desenfreio daqueles voltando da farra. Puxadas firmes dos possantes motores, em clara demonstração de pequenez cerebral e educação zero. Mas domingo de manhã não. Os monstros metálicos estão escondidos em covis. Seus babacas condutores, escornados em algum canto em sono sem sonhos, acordarão tarde com uma puta dor de cabeça e gosto de corrimão de escada na boca. Esquece esses caras. Um violão acorda em algum quintal. Risos, criançada. Alegria!

A tarde chega marrenta, é domingo. A existência da perspectiva de segunda começa a dar as caras. Os sons mudam, luzes começam a piscar em um acender de cidade. Sons agora dos clássicos e deprimentes programas de televisão tradicionais. Antes, um longe aborrecido narrar de jogo de futebol. Também sentia isso, hoje não mais.

Sabe aquela brisa que desce narina abaixo e bate manso, refrescante, no peito, na boca do estômago? Os ouvidos buscam em um vazio de paz absoluta qualquer barulhinho, um existir plenitude. A paz, equilíbrio total.

Apenas a pele lhe mantém aqui no mundo físico. Momento único de superabundância, de contato com o universo. Um prazer inigualável.

Assim estão sendo meus finais de tarde de domingo. Pode ser o seu, se quiser. Quanto à chegada da segunda, que ótimo, se não achar nenhum motivo para dela gostar, o que é uma pena, te dou pelo menos um motivo como conforto, é o dia mais distante da próxima. Carpe diem.

Às segundas em particular a vida fica mais leve. No mais, Gerais.







Jornal Correio em 28 de agosto 2016

segunda-feira, agosto 22

Cidadão







Um bom dia de coração para todas as gentes do bem. Pois vejam queridos, ganhei identidade virei feliz, homem do cerrado. Terra que me abraçou como cria.
Engrossei couro, curti pele sob o sol mais bonito das paragens.
Meu peito em alegria pula dança de aleluias, revoada de tanajuras, maritacas, bicos-de-lacre, andorinhas da patagônia, migratórias como eu. Elas se vão eu, guardei pouso, fiquei
Posso assim agora responder firme: De onde seo moço? Por onde?
Uberlândia digo altivo olhar fincado em quem perguntou. O erre sai raspado como da origem, ligo não, Uberrrlândia, lá/ali na ponta das Minas, aqui bem dentro do peito. Alma acalmada por naturalidade possuir. Os filhos fazem as vezes do cantar a palavra nascidos/criados. De papel passado Uberlândia

Cá cheguei manso, não de paz de medo. Um novo grande por demais. Um vasto sem serras que me mostravam distâncias. Olhava, não via fim. O céu encostava em um lá longe, como mar fosse. Estranhamento.
A seca de secar com vontade, a temporada maravilhosa das chuvas, o renascer a olhos vistos. Descobri lento alguns de seus segredos. Outros ficarão para sempre em baús, caixas guardadas.
O sol nascia do pasto, olhar reto. Depois a lua. Não tem igual em grandeza e clarão-ouro. Outro vazio no começar. As gentes. Distantes desconfiadas, não era filho de ninguém, carregava sobre nome difícil, estrangeiro.
Morar em pensão, conhecer devagar o jeito daquele que tinha, sem maldade porém seco no começar. Conquistas
Tempo se vez marca. Conheci afinal as cozinhas e quintais. Vi o escondido, reservado para poucos. O jeito mineiro de ser dessa Minas que ainda não era minha. Portas e sorrisos se abrindo. Ganhei a confiança. Passei pra dentro.
Apaixonei, casei, descasei, nunca desapaixonei/desamorei, sentimento fraterno/eterno. Filhos lindos, da terra nova nascidos. Raiz profunda criada, A bruteza bela do cerrado. Me tornei pequizeiro, barbatimão, Buriti, Mangaba, mutamba, jatobá. Me tornei munguba, ipê de todas as cores, a aroeira - aqui não pica-pau. Posso peroba-do-campo, timbó sem veneno.

Me colori em penas e pelos me tornei um deles: onça, ema, sagui cobras cascavel, jiboia e jararaca.Solitário com lobo-guará, cachorro-do-mato, arredio que nem Bandeira.Me vejo tucano-rei, urubu-rei, perdiz. A arara-canindé, pato do mato, canarinho-da-terra.

Banhei em cachoeiras onde ninguém vê serra, parecendo brotar do chão. Aprendi vastidão. Saí de casulo apertado de maravilhosas montanhas, conheci chance de ter duas moradas. Dois sotaques, dois jeitos. Me tornei mais livre, de Barbatimão, Capim Gordura para fartura de Colonião, napié.
Me perfumei de tantas flores, êxtase de abelha jatái

O céu mais lindo me cobre, as noites mais iluminadas de estrelas e sons que só aqui existem. Urutau cantou em minha janela. Caburezinha em vigília, zela.

E as gentes. De tudo quanto é canto, recanto perturas/lonjuras. Um misturado de jeitos. Custa conhecer. as Minas aqui desconfiadas são, tem que ganhar confiança, provar a que veio. Se em paz para somar, logo vira de casa.
Agora com orgulho posso contar. Sou filho da terra, mãe de leite. Me deu sustento, base, referência. Meus amigos, de cá e de lá. Carrego a felicidade de não apenas me sentir, mas, mesmo por decreto, de ser agora uberlandense.






Jornal Correio em 21 de agosto de 2016

terça-feira, agosto 16

Passagem



Pois assim, tem cada coisa que acontece em nossas vidas que chegam a dar frio na espinhela. Os ritos de passagem, a ordem do tempo e o jeito que se apresenta é regra na vivência de humanos e não humanos. Bichos por exemplo. Passarinho nasce numa dependência danada de pai e mãe. Tem que comer. Abre imenso bico para chamar atenção e ganhar mais grilos, minhocas ou o que vier de longe, trazido no papo de seus guardiões. Passa tempo na preguiça. Empluma, muda pio. Chega hora, mesmo a contragosto, empurrado, tocado do ninho é. Primeiro voo solo despenca. Mas apruma, toma gosto e não para mais. Primeira passagem.

Depois, aulas de canto. Do desafinado piar a gorjeios insossos, desafinado num trocar de voz.
Torna-se tenor, barítono ou outro especialista. Segunda passagem. Aprende a namorar, conquista a parceira e leva a vida bem vivida, se não houver interferência de mão de gente a prendê-lo em gaiola, pedra de estilingue ou queimada assassina a lhe impor fim. Peguei passarinho, mas reparo em qualquer criatura. Taruíras, minhas preferidas, gatos, cães, morcegos e até escorpiões e borboletas. Todos têm ritmo, harmonia de vivência.

Poderia ser diferente com as gentes? Toca falar de rituais diferentes que nos são apresentados, bons e ruins, pouco naturais, mas presentes.

O estúpido aprender a fumar foi um deles, mas naquele tempo era assim, todos fumavam. O motivo? Fazer parte de um grupo, fingir de pavão para as moças e tantas outras bobagens importantes nas cabeças desmioladas de pré-adolescentes. Fazia-se a rodinha e os mais velhos acendiam o pito. Os iniciados tinham que botar a fumaça pra dentro, segurar e ainda falar o nome de cada um ali presente sem soltar um tiquinho que fosse da baforada. Isto feito soltava tudo de uma vez.

O mundo girava ao seu redor. Uma vontade de passar mal segurada para não fazer feio. Alguns caíam de bunda no chão e tossiam os bofes. Pronto, passou. Agora era treinar e fumar até dar picumã nas narinas. Felizmente todos de nosso grupo pararam logo e hoje fumar encanta cada vez menos gente. Fumar significa hoje uma grande caretice catinguda. Uma passagem.

Qual adolescente que não sonhou com os 18 anos para poder tirar habilitação? Carro tinha não, mas habilitação era um troféu a exibir. E entrar num bar e pedir uma cerveja? Tem dezoito? Perguntaria o garçom. Com ares de grande ator apresentava a identidade fingindo enfado. Assistir filme proibido para menores, conquista! Outra travessia.

Mil outras para mostrar, pois a vida é regrada por muitas. Porém, uma em especial me marcou. Um belo dia entrei na casa dos sessenta. Recente, mas aqui estou. Nada de lugar comum, do tipo “Sex-agenário” em demonstração clara de tentar gritar ao mundo “oh, eu dô conta viu!?”. Nada disso.

Ao colocar o pé em minha terceira juventude, corri para conseguir o cartão de estacionamento para idoso. Senti-me aquele menino da porta do cinema, pronto para assistir “Último tango em Paris”.
Orgulho de cabelos grisalhos e da vaga ali me esperando. Tudo ia muito bem, até que um belo dia um amigo me perguntou:
— Cara, você vem aqui todo dia, certo?

Acenei um sim desconfiado.
— Você vem fazer o quê mesmo?

Correr 5, 10, 15 Km, às vezes, dependendo da disposição.
— Então, me explica o motivo de ocupar vaga de idoso?

— Uai, é direito adquirido, tenho sessenta!

— Direito é, mas é justo? Você vem aqui correr 10 km e quer parar aqui? Deixa para idoso que mais precisa, aquele que tem dificuldade de se locomover. O que são mais 100, 200 metros para quem vai detonar duas, três ou mais léguas?

Pois olhe, não parei mais em tais vagas. Acima do direito adquirido, a consciência não permitia. Fico triste quando vejo um mundo de gente nova usando irregularmente vagas reservadas para idosos e/ou deficientes físicos na cara dura. Nada como um olhar de fora para te mostrar caminhos.

Uso mais não. Ali não. Obrigado amigo Otolini. Graças a sua sensata observação subi mais um degrau na escada do viver. Outro ritual interno. Bela passagem.






Jornal Correio 14 de agosto de 2016

segunda-feira, agosto 8

Capotraste



Nossa língua é uma viagem. Já observaram quantas palavras soam como uma coisa e na verdade é outra totalmente diferente? Pensei aqui algumas que sempre me levavam a outro lugar e as compartilho com você, que tem a paciência de ler minhas elucubrações. Pronto, aí já está uma das recolhidas na tarrafa da curiosidade. Tá certo que ela significa exatamente o que quer dizer, mas pense que louco, se você passou a noite estudando, você elucubrou pra caramba. Sabia? Porém essa é um nadinha de nada.

Ando com uma “osfresia” danada. Meu Jesus Cristim, já procurou um médico? Tenho um amigo que quase morreu disso. Ainda mais se for acompanhada de “iscnofonia”, aí, lascou. É, acho que você tem razão, vou ligeiro. Será que isso pega? Vou avisar o pessoal do laboratório, pois vai que passei isso para alguém, quero carregar culpa não. Ouvi contar que chá de “ginge” é bom para esse trem. Ponha umas gotinhas de “abléfaro” que passa em dois tempos.

Bom, estimo melhoras. Vou aproveitar o bom tempo e ver se aproveito o manso do rio para um “náfego” tranquilo. Cuidado com o “Zafimeiro”, dizem que em agosto ele anda solto pelos cantos, um perigo.
Vale puxar reza, senão novena. Esse agosto é de agouro marrento, redemoinho e sacis a solta, é de tomar cuidado, vigília.

Vou-me antes do acainhar dos cães no trecho e, se tiver sorte, ainda pesco meia dúzia de “arúspices”, já que é tempo delas. Dá uma moqueca de lamber beiço.

Pois não é? Cada palavra no seu galho. Só não entendo os motivos pelos quais elas me levam a pensar longe coisa que não é, mas lembrança faz nascer. Tem língua mais repleta de histórias e passagens de Marias-Fumaça do que a nossa? Querida e rica língua pátria. É “acontista” de nascença.

Outro dia, meu filho me apresentou uma. Ao sair apressado para buscar um capotraste, perguntou a passadas se eu queria alguma coisa. Pensei ligeiro, pois estava mesmo com fome e, ainda sentindo o vento de sua saída, respondi:

Traz um pra mim também. Pode ser mal passado! Atentei que ele parou. Quietou alguns segundos e voltou de fasto. Colocou só a cabeça pra dentro e, com sorriso armado, perguntou:

Como é que é? Aí, falei: uai, pode não? Estas coisas se não forem malpassadas perdem o gosto.

Pai, capotraste não é de comer, é para o braço do violão, como se fosse uma pestana.

Aí, parado fiquei eu. Certo, respondi, mas que tem som de comida e boa tem. Se não é, deveria ser. E outra, pestana pra mim é fio de cabelo da pálpebra ou, quando muito, é puxar uma palha, de preferência em rede depois do almoço, numa deliciosa preguiça mineira.

É cada uma!

Outras estranhices que mostrei vou contar significado não, deixo busca no dicionário, mas só vale o de papel, aquele livrão grosso e com aroma de muita coisa contatada. Fica de presente para você. Enquanto isso, tome um belo “Cabotino”, acompanhado de deliciosa “viscacha”, não há quem resista.







quarta-feira, agosto 3

Quintais



Tenho mania de lua, sempre tive, desde pequeno. Cresci em quintal grande, cresci em vários quintais. Conto. Apesar dos muros que separavam as casas, eles, os muros, não delimitavam espaço para nós. Sempre havia árvore a ser escalada e buracos nos tijolos que nos servir de apoio. Era pulo só e já estávamos na continuação de nossos quintais. Alguns eram hostis. Contei do galo que dava carreira em quem se aventurasse por seu terreiro. Outros, donos, ruins em tristeza e péssimo humor, nos rogavam pragas e atiravam caquis maduros quando, como bando de micos, cruzávamos “seu território”.

Nem podiam imaginar que suas moitas de bananeiras, há muito, se tornaram nossos banheiros. Para que correr apertado para casa se ali em “nosso” pedaço existiam tantos banheiros desocupados? É fato que, de quando em vez, um de nós saía correndo com as calças arriadas escorraçado por alguma galinha no choco. Ninhos espalhados pelas moitas eram mais temidas armadilhas dos cães bravos.

Aliás dos cães. Alguns infelizes que detestavam crianças, bem dizer não éramos exatamente santos, pelo contrário nos faziam miúdos de verdade, com toda coragem e molecagem que nossas pernas e imaginação permitissem.

Logo que corria notícias de cachorro novo em nossos quintais começava estratégia de conquista.
Deitado sobre o muro deixava o bicho latir grosso sem parar. O dono chegava na varanda, via cena e sorria satisfeito a pensar : um menino que aqui não entra mais, frutas e galinhas seguras. Qual!
O bicho latia até ficar rouco e, cansado de em pé ficar, soltava o quarto traseiro, sentava. Bom sinal. O latido ia ficando fraquinho, murmúrio, até se trasnformar em bocejo canino. Largava o corpo com as patas da frente esticadas, parecendo a desnarizada esfinge egípcia e deitava em leve rosnar. Era o sinal para o segundo estágio da conquista.

Todos nós carregávamos bolinhas miúdas de carne, do tamanho de bolinhas de gude, surrupiadas de geladeiras de casa. Hora em vez rendia coça, pois um tinha levado a mistura do almoço. Chinelo cantava. Sinal respeitado por todos. Aquela marca vermelha de sandália havaiana pregada nas costas era um troféu, cicatriz de uma guerra de paz. E, acredite, ninguém virou bandido por conta disso.

As bolinhas de carne iam sendo atiradas junto ao cachorro que, depois de bom cheirar, catava uma a uma com o canto da boca, comia ainda deitado, focinho rente ao chão. Umas jogadas mais um pouquinho em nossa direção. Com preguiça, levantava. Uma espriguiçada de dobrar lombo para frente, outro bocejo e lá vinha o bicho. Assim acontecia durante alguns dias. Logo já fazia parte da turma, acompanhava pulando e aí não tinha jabuticaba que chegasse. O dono do bicho em feliz maldade, achando agora que era maritaca, preparava espingarda de sal.

Tenho mania de lua. Sei suas fases, acompanho seu brilho, seu silêncio. Os bichos me ajudam a lembrar. Morcegos em particular. Se é lua cheia, o movimento é menor, começa tarde. Na nova é aquele fantástico aranzé.

Um piseiro no céu. Triste aquele que não olha o céu com paixão verdadeira. O resto é falsa poesia.









Em Jornal Correio de 31 de julho de 2016