Pois assim, tem cada coisa que acontece em nossas vidas que chegam a dar frio na espinhela. Os ritos de passagem, a ordem do tempo e o jeito que se apresenta é regra na vivência de humanos e não humanos. Bichos por exemplo. Passarinho nasce numa dependência danada de pai e mãe. Tem que comer. Abre imenso bico para chamar atenção e ganhar mais grilos, minhocas ou o que vier de longe, trazido no papo de seus guardiões. Passa tempo na preguiça. Empluma, muda pio. Chega hora, mesmo a contragosto, empurrado, tocado do ninho é. Primeiro voo solo despenca. Mas apruma, toma gosto e não para mais. Primeira passagem.
Depois, aulas de canto. Do desafinado piar a gorjeios insossos, desafinado num trocar de voz.
Torna-se tenor, barítono ou outro especialista. Segunda passagem. Aprende a namorar, conquista a parceira e leva a vida bem vivida, se não houver interferência de mão de gente a prendê-lo em gaiola, pedra de estilingue ou queimada assassina a lhe impor fim. Peguei passarinho, mas reparo em qualquer criatura. Taruíras, minhas preferidas, gatos, cães, morcegos e até escorpiões e borboletas. Todos têm ritmo, harmonia de vivência.
Poderia ser diferente com as gentes? Toca falar de rituais diferentes que nos são apresentados, bons e ruins, pouco naturais, mas presentes.
O estúpido aprender a fumar foi um deles, mas naquele tempo era assim, todos fumavam. O motivo? Fazer parte de um grupo, fingir de pavão para as moças e tantas outras bobagens importantes nas cabeças desmioladas de pré-adolescentes. Fazia-se a rodinha e os mais velhos acendiam o pito. Os iniciados tinham que botar a fumaça pra dentro, segurar e ainda falar o nome de cada um ali presente sem soltar um tiquinho que fosse da baforada. Isto feito soltava tudo de uma vez.
O mundo girava ao seu redor. Uma vontade de passar mal segurada para não fazer feio. Alguns caíam de bunda no chão e tossiam os bofes. Pronto, passou. Agora era treinar e fumar até dar picumã nas narinas. Felizmente todos de nosso grupo pararam logo e hoje fumar encanta cada vez menos gente. Fumar significa hoje uma grande caretice catinguda. Uma passagem.
Qual adolescente que não sonhou com os 18 anos para poder tirar habilitação? Carro tinha não, mas habilitação era um troféu a exibir. E entrar num bar e pedir uma cerveja? Tem dezoito? Perguntaria o garçom. Com ares de grande ator apresentava a identidade fingindo enfado. Assistir filme proibido para menores, conquista! Outra travessia.
Mil outras para mostrar, pois a vida é regrada por muitas. Porém, uma em especial me marcou. Um belo dia entrei na casa dos sessenta. Recente, mas aqui estou. Nada de lugar comum, do tipo “Sex-agenário” em demonstração clara de tentar gritar ao mundo “oh, eu dô conta viu!?”. Nada disso.
Ao colocar o pé em minha terceira juventude, corri para conseguir o cartão de estacionamento para idoso. Senti-me aquele menino da porta do cinema, pronto para assistir “Último tango em Paris”.
Orgulho de cabelos grisalhos e da vaga ali me esperando. Tudo ia muito bem, até que um belo dia um amigo me perguntou:
— Cara, você vem aqui todo dia, certo?
Acenei um sim desconfiado.
— Você vem fazer o quê mesmo?
Correr 5, 10, 15 Km, às vezes, dependendo da disposição.
— Então, me explica o motivo de ocupar vaga de idoso?
— Uai, é direito adquirido, tenho sessenta!
— Direito é, mas é justo? Você vem aqui correr 10 km e quer parar aqui? Deixa para idoso que mais precisa, aquele que tem dificuldade de se locomover. O que são mais 100, 200 metros para quem vai detonar duas, três ou mais léguas?
Pois olhe, não parei mais em tais vagas. Acima do direito adquirido, a consciência não permitia. Fico triste quando vejo um mundo de gente nova usando irregularmente vagas reservadas para idosos e/ou deficientes físicos na cara dura. Nada como um olhar de fora para te mostrar caminhos.
Uso mais não. Ali não. Obrigado amigo Otolini. Graças a sua sensata observação subi mais um degrau na escada do viver. Outro ritual interno. Bela passagem.
Jornal Correio 14 de agosto de 2016
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