segunda-feira, junho 30

Abstração

Quem a visse de longe a daria por possuída ou coisa do gênero.
Descalça e em desenfreada carreira cruzava o pasto de um lado para outro. Não se dava conta e nem se incomodava com as enormes manchas brancas espalhadas no meio do colonião, e ao que se via os gigantes nelores apesar de costumeiramente mal-humorados, também não lhe davam a mínima. Acompanhavam com olhos bovinamente mansos aquela correria. Apenas uma ou outra parida se levantava com a cria ao pé e a seguia com as vistas e o corpo, nunca lhe dando as costas, instinto, protegendo filhote. Nenhum nela investiu.
Dois quero-queros levantaram vôo aos gritos bem perto dela o que a alegrou mais ainda, juntando à sua carreira agudos sons a imitar as aves.

De tempos em tempos parava junto à grande vasca que servia de bebedouro para o gado e lá mergulhava a cabeça com gosto. Em alegre arroubo sacudia o enorme cabelo preto molhado e aos pinotes continuava sua dança de felicidade.
O vento varria-lhe a face e o doce cheiro do mato lhe dava mais e mais energia para correr e pular. Borboletas coloridas espalhavam-se em frenesi à sua passagem. Preás afobados se entocavam medrosos enquanto perdizes em assobiados vôos abriam caminho.
Cambalhotas no capim. Se jogou de vez no verde não se importando em nada se havia ou não carrapatos para lhe subirem às vestes e à pele. Descansando observava formigas cortadeiras em militar desfile a empunhar verdes bandeiras de folhas. O ir e vir dos bichinhos quase a adormeceu. Dormir de jeito algum.

Caminhou arrastando a ponta dos dedos dos pés pelo trilheiro de gado. Nas mãos levava um enorme galho de mama-cadela com o qual cutucava tudo que era moita por onde passava, aprendizado, podia ter cobra.
Ao longe pôs atenção em goiabeira carregada, vista apurada de gavião real. Nova carreira e em segundos estava a balançar em fortes galhos malhados e a saborear o doce-azedo das frutas ainda de vez.
Um marimbondo como que a avisar passou zunindo próximo à sua cabeça. Tempo só de ligeiro desviar do bicho e com o canto dos olhos descobrir a imensa cachopa, morada deles. Com cuidado infantil desceu da árvore, caçou rumo de casa. Sentiu cheiro de fogão de lenha e de comida. Avistou lá em baixo um carro a levantar poeira na estrada também rumando para lá. Riu com estranha alegria e num galope só buscou a mesma direção, eram os primos e amigo de primos a chegarem da cidade, vinham de longe. Nem se importando com sua aparência de bacarozinho de chiqueiro de tão suja, com o coração disparado em aflição e pressa deslizou como o próprio vento em direção aos que chegavam. Mal sabia que estava prestes a conhecer seu primeiro e maior amor e que tudo em sua vida de transformaria para sempre.


William H Stutz
junho - 2008

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