terça-feira, junho 3

O Leão é manso

"Polícia Ambiental tenta capturar leão", CORREIO de Uberlândia, Caderno Cidade de 24/5/2008”

Acostumado a se alimentar de domadores e incautas trapezistas, que, vez ou outra, de maduras despencavam em sua jaula, estava difícil acostumar com a nova dieta, nem a cesta-leão do governo convencia. Por um tempo, tentara comer fazendeiros, tarefa impossível, pois, além de raramente aparecerem nas propriedades, quando o faziam ali chegavam ou de avião ou caminhonetes blindadas muito bem protegidas. Tentou peões e agregados, mas, caçador noturno que por necessidade se tornou, os horários das tocaias batiam com os das novelas, ninguém saía de casa, faltou presa, um fiasco.

Ia se remediando com um ou outro sacoleiro ou eventualmente algum ladrãozinho de galinha que, na tentativa de burlar a fiscalização ou fugir da polícia, se embrenhava cerrado adentro. Como rei que era, tentou em vão organizar a bicharada da mata. Não deu certo, os bichos daqui eram insubordinados por demais, não respeitavam em nada sua real autoridade, não davam a mínima para seus mandos e rugidos, isso sem contar as constantes gozações de lobos-guarás, tatus, pacas e papagaios que viviam a cochichar às suas costas, ridicularizando e fazendo piadas de sua enorme juba vermelho-caju, fruto de muita tintura dos tempos de picadeiro. A própria mancha de cerrado em que se escondeu era um tormento. Cercada de canaviais por todos os lados, vinha sendo devorada pelas beiradas, tamanha a voracidade dos usineiros. Logo não sobraria pé de pau para contar história. Isso para não lembrar a tristeza da época de corte da cana quando passava a sofrer de insuportável bronquite alérgica, rinite crônica, sinusite aguda, pigarro e ataques de cobras a buscar refúgio das criminosas chamas ateadas às plantações. A pouca água de minguado córrego que tinha para saciar a sede exalava terrível cheiro de vinhoto, não se viam ali lambaris ou girinos em seu raso leito, verde deserto.

Por várias vezes tentou migrar mais para o norte, mas era sempre impedido por grupos de sem-terra acampados aqui e acolá que por ele não nutriam simpatia, pois era visto como um símbolo da realeza imperialista. Argumentava que como pedágio pela travessia poderia de bom grado comer um ou outro capataz que os atormentava, e nada adiantava dizer que de real só tinha a fama e alguns mendigados trocados. Nada. E, para abalar mais ainda sua auto-estima, ao fim da discussão sempre tinha um engraçadinho que de longe vinha com a velha piadinha: “Senta gente, o leão é manso, não tem dentes...”. Espumava contido de ódio e humilhação. Apelou para programas de rádio e televisão daqueles que adoram o bizarro, pregou no deserto, ninguém se sensibilizava com seu desespero.

Escreveu para ONGs, mas estas, depois de demoradas consultas a seus escritórios nas capitais, informavam que nada podiam fazer, pois, como leão que era, não podia ser por eles protegido pois pertencia à fauna exótica e seus estatutos só tratavam de animais nativos. Magro, faminto, escova progressiva já desfeita, a tintura da juba clareando, denunciando as raízes brancas de seus pêlos, e por fim como golpe de misericórdia perdeu a bolsa-leão do governo, pois não conseguia mais comprovar endereço fixo, se rendeu. Resignado, cabisbaixo, deprimido, sem um miado sequer, voltou para o circo.






Publicado em Jornal Correio - Ponto de Vista
03/05/2008

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