sexta-feira, agosto 19

Infância


"Um caminhão carregado de doces foi saqueado por volta das 23h desta quarta-feira (28), na BR-365, próximo ao km 644."
Jornal Correio caderno Cidade & Região de 07/2011
Infância difícil. Vivia na roça, rotina de adulto. Madrugava todo santo dia. Acordava não, era arrancado da cama pelo vozeirão do pai: — Bora menino, já faz hora!

O café requentado na chaleira dormitava sobre a chapa morna do fogão a lenha. Gole ligeiro, um biscoito frito da lata e pronto. Já estava calçado e vestido.

Rumo ao curral apartar bezerro e depois tirar leite. Não foi uma, nem duas vezes, que dormiu com a cabeça encostada no vazio das vacas magras pela seca prolongada. O pasto findo aumentava mais ainda o trabalho. Depois de secar as vacas era hora de picar cana e servir no cocho, capinar roça, preparar chão para a chegada, sabe-se lá quando, das águas. O pai passava perto, olhava, tomava a enxada de sua mão, encabava de modo certo, olhava torto, sem raiva, sem nada. Raramente trocavam palavra. Mas sabia que podia contar com ele para o que desse e viesse. Era o jeito dele, sisudo, cabisbaixo, um homem só em si mesmo.

Não conhecera a mãe, dizem que morreu quando nasceu, nas mãos de parteira. O pai o criou sozinho, filho único.

Se lhe perguntassem quando era seu aniversário não saberia dizer. O pai ainda não o tinha registrado e, portanto, não podia ir à escola, um dos seus grandes sonhos. Quando em vez criava coragem e perguntava olhando para o chão, nervoso, se ia poder estudar, riscando a poeira com graveto de goiabeira. O pai, monossilábico respondia sempre:
- Logo...

E assim seguia a vida. Ordenha, capina, cura de umbigo de bezerro novo, fruta no pé, banho de córrego, pesca de lambari, sono de jacaré.

Dia de matar porco era festa. Junto com uma tia que vinha visitá-los de quando em vez, fritavam carne, guardavam em lata com manteiga e faziam sabão de soda. O almoço nesse dia era farto de comida e até sobremesa. A tia fazia doces maravilhosos com tudo quanto é fruta que havia. O que ele mais gostava: doce de figo. Não se cansava nunca de raspar com caco de telha, um a um, a baciada de figos.

Um dia o pai chegou manso e chamou:
- Vamô pra cidade fazer registro, chegou hora de estudar.

Ele não sabia se ria ou chorava, de tamanha alegria, só não demonstrava nada para o pai não mudar de idéia. Por fora a mesma expressão, por dentro, explosão. A pressa foi tamanha que vestiu a camisa do avesso e as botinas trocadas, o que, surpreendentemente, arrancou sorriso breve de seu pai.Fez que nem, sorriu ligeiro. Na estrada para pegar ônibus topou com cena surreal:
No preto do asfalto só se via cor. Tapete deslumbrante de vermelho, azul, amarelo, verde ouro e prata. A estrada cintilava como se estrelas coloridas tivessem caído do céu e espalhado doce chuva de balas, chocolates, pirulitos e bombons por todo o caminho.

Aquilo não podia ser de verdade! Era mágico.

Sem pensar duas vezes agachou manso e tomou nas mãos uma balinha de papel dourado. Tremendo a colocou na palma da mão e admirado, fechou os olhos imaginando seu sabor. A boca encheu d’água. Apertou-a entre os dedos como se medo houvesse daquela jóia lhe escapar ou pior, ele acordar e descobrir que nada daquilo era real.

Um vozeirão familiar o trouxe de volta:
— Deixa aí, não é nosso.
Envergonhado largou a balinha, não sem antes cheirá-la com muita força, enchendo os pulmões com aquele cheiro doce que o acompanharia pelo resto de seus dias. Seguiu caminho sem olhar para trás.





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