quarta-feira, janeiro 2

Descaminhos




Foto: Olhares

Nunca tinha saído da roça. Mudava de fazenda em fazenda sempre embarcado, sentindo-se o próprio boia-fria, escravidão. Chegando aos novos destinos, o povo punha-se a gritar com ele e com seus companheiros de sina. Como se não estivessem todos acostumados com aquele corriqueiro ritual. Fingia paciência para não sofrer agressões. A maioria, mesmo, assim descia em azáfama agonia.

Pelo menos água e comida estavam sempre lá a esperá-los e, curiosamente, em abundância, como se quisessem compensar todo o estrago feito em seus corpos durante as jornadas. As viagens, em algumas circunstâncias, eram terríveis. Estradas mal cuidadas, muitos atalhos perigosos para fugir de fiscalização. Asfalto, muito pouco. Terra, poeira, lama, predominavam. Dias e mais dias mal acomodados, às vezes, agarrados em atoleiros gigantescos. Terra massapé, quem conhece sabe, é chuviscar e a armadilha está pronta. Visgo puro, às vezes, nem trator passa. Mas é só abrir um tempinho, sol fraco mesmo, poeira brota do nada. Terra de cultura, rica e cobiçada, hoje mais pelos donos da cana.

Já se sentia meio velho, sem forças para tantas idas e vindas. Queria quietude.

A fazenda em que morava agora era pequena, sítio mesmo. Mas bom pasto havia, fartura de água e o pessoal era aparentemente mais tranquilo. O serviço mais maneiro.

Na madrugada sofria com isso, mal dormia, as noites eram tormentos recheados de pesadelos e agitação. Ouvia miados da besta e sentia com intensa realidade a pele sendo cutucada com ferrões, estalar de chicote. Lembranças de uma infância doida.

A mãe perdera para uma onça e viu o pai aos berros ser levado para nunca mais.

Naquela noite de lua clara, em suas andanças, topou com porteira alta aberta. Empurrou leve. Dobradiças velhas chiaram que nem morcego em forro de tapera. Tomou coragem de moleque, resolveu aprontar uma e saiu a meio trote, rompendo estrada afora. Ao longe, brilho de cidade. Como mariposa em transe, seguiu direto para as luzes.

Andou muito, a serra dava voltas, muitas cercas a furar.

Passado muito tempo, chegou aonde queria.

O primeiro susto foi o barulho ensurdecedor. Música sertaneja às alturas em cada esquina, sentiu-se em casa, mas desconfortável; conhecia bem aquela toada. O chão preto e duro o conduzia a lugar algum tantas eram as opções de caminhos. Bateu arrependimento. Onde fora se meter? E pior, como sair disso? Como voltar? Sentiu saudades dos grilos, da harmônica cantoria dos sapos e rãs, o piado do urutau, os sons de suas noites.
Perdeu o norte, não sabia que rumo tomar. Foi invadido por súbito ataque de ansiedade, pânico mesmo. Calma, pensou. Aqui cheguei, daqui saio.

Tanto fuçou que, como miragem bem à sua frente, surgiu, como passe de mágica, o que lhe pareceu ser as plataformas com as quais estava acostumado a lidar. Certo, era mais moderna, muito iluminada e limpa, mas não custava tentar. Os cheiros lhe eram estranhos.

Subiu a rampa meio confuso, desconfiado. As pessoas dele se afastavam como se doente fosse. Botou a cara dentro do embarcadouro high tech, era ali o caminho ou estava danado.

Alguém gritou ao fundo: “A vaca quer pegar o ônibus!”.

Ofendido deu de lado e se foi perdido.

Vaca? Cara doido, macho que era de pura linhagem! Cobridor oficial de novilhas escolhidas a dedo! Genética apurada, pedigree disputado. Vaca?

“Ora, seu moço, tem dó. Vai amolar o boi!”.

Inspirado em vídeo publicado no Correio Online, caderno Cidade e Região em 11/12/2012:
Boi é flagrado “passeando” por estação do transporte coletivo de Uberlândia.













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