Hora do almoço. Meio-dia em ponto. Garis param a varrição e buscam suas marmitas. No canteiro da avenida, sob a sombra generosa de belos oitis, em silêncio de templo budista, cabeças baixas, calados comem. Um faz o sinal da cruz ao amassar a quentinha vazia. Agradecimento sincero. Aos poucos vão, um a um, terminando a refeição. Talvez a primeira do dia após o café puro, solitário do madrugar.
Alguns se estendem à sombra, jogam o boné sobre os olhos em busca de cochilo reparador. Outros conversam baixinho. Disciplina. Dura pouco. Logo um começa a brincar com outra. São garis e garis. Ou seriam garis masculinos e garis femininos? Hoje, tudo tem que ser pontuado, risco do politicamente incorreto. Não mais sussurram. O volume da voz toma conta da rua e ouve-se de qualquer canto as provocações brincalhonas. Casam um com outro, “coretam” – concordo, esta palavra não existe, é inventada, faz parte de nosso vocabulário regional e, deliciosamente, expressa o que sonoriza. Um sinônimo? Gozação, troça, zombaria. Coretam uns aos outros em alegria infantil.
Passado um tempo aquele que parece ser o chefe da turma, bate palmas e grita: “Bora gente, vamos mexer o doce!”. A alegria com que voltam às suas vassouras e pás é contagiante. Quem não gostaria de ter um grupo assim, motivado, feliz no dia a dia de trabalho duro e, acredito, de remuneração nada convincente?
Penso em gente engravatada e triste. Pena que os garis são invisíveis. Passamos por eles como se fossem inanimados seres; postes, calçadas. Mal sabemos que aqueles possuem o MBA da vida. Certa feita foram humilhados ao vivo, na televisão, por um jornalista. Microfone estava aberto. Me nego até hoje a assisti-lo. O que ele falou com até certa raiva é que é uma vergonha!
A vida urbana seria impossível sem a presença deste batalhão de profissionais. Houve época em que o trabalho de varrição e coleta de lixo era atribuição direta do município.
Quando se ventilava algum movimento de greve ou paralisação no setor público, a grande preocupação dos mandatários de plantão era a adesão ou não da limpeza urbana.
E do outro lado, os sindicatos torciam e rezavam para que a moçada aderisse aos movimentos. Eram o fiel da balança. A população parecia não sentir a mínima falta do restante dos servidores. Mas do pessoal do lixo, a história era outra. Deu no que deu, terceirizaram o serviço para alegria de uns e desmobilização de outros.
Conheço por nome os que varrem minha rua. Os admiro. Não levam suas frustrações para a linha de frente, cuidam da maquiagem da cidade, reduzem consideravelmente o risco de doenças das gentes. Fazem-nos sentir orgulho de mostrar nossa cidade.
Uma grande pena que o trabalho destes heróis passe despercebido da maioria de nós.
Rua limpa hoje não demora muito a receber outra carga da formação do caráter e educação de muita gente fina. Não demoram os papéis, as pontas de cigarros, garrafas e coisas que até Deus duvida, serão novamente lançados despudoradamente em nossas vias. Como formiguinhas, tão logo amanhece, lá estão eles e elas. Novamente, a rua se enche de sons de vassouras, de risadas e “coretos”. As vassouras não param nunca. Com tanta sujeira, varre-se também a falta de educação, a civilidade, a falta de vergonha na cara daqueles que, como monarcas, atiram seus restos ao vento.
Publicado Jornal Correio em 6 de Julho de 2014
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