Em um março de algum ano nem tão longe assim, escrevi em meu caderno de poemas:
Estava eu distraído a contar estrelas quando relógio faminto pousou em meu pulso Sorveu voraz todo o tempo que nele cabia
Saciado, como bom tempo voou
Tristemente confesso; sinto falta de cada segundo roubado.
A rapidez misteriosa dessa marcha “ininterrupta e eterna de instantes” sempre me intrigou.
Quando muito jovens, reclamávamos da lentidão do seu passar. Não víamos a hora de comemorar aniversário de dezoito anos, um ritual de passagem imaginário onde a data mágica nos liberaria do jugo do mundo. Poderíamos sentar em um bar e pedir uma cerveja, poderíamos sem medo da polícia frequentar as casas e becos da rua Guaicurus, da Paraná, de banho tomado, barba feita – barba santo Homem, que barba? Penugens que, em nossa cabeça infantil, imaginávamos que nos envelhecia e nos fazia parecer mais velhos, viris. Empesteados de Leite de Rosas ou Lancaster deixávamos rastros de um perfume (?) dos quais abelhas, varejeiras e Aedes, mesmo não existindo mais em território nacional à época, fugiam em polvorosa, pior do que Rodox.
E podíamos dirigir. Juntamos migalhas, fazíamos biscates, vendíamos garrafas e jornais velhos, tudo para juntar dinheiro para pagar auto-escola – recuso-me a usar a nova grafia imposta pelo Acordo Ortográfico de 1990; só não uso o trema, que para mim só servia para borrar o papel quando ainda se escrevia usando caneta tinteiro. Fazer aqueles dois pontinhos era mancha imensa e certa no imaculado papel almaço.
Então, podíamos dirigir, tirávamos a suada carteira de habilitação, mas cadê o carro?
Não importava. O que valia era ostentar a carteira de motorista mesmo sabendo que seria revalidada muitas vezes até conseguirmos comprar nosso primeiro e carro velho, caindo aos pedaços, queimando óleo quarenta.
E tinha o título de eleitor, não servia para muita coisa à época, mas, em 1974 votamos pela primeira vez e sentimos o prazer de eleger Itamar Franco senador. Uma vingança à mordaça imposta pela redentora.
Quase ia esquecendo o temido certificado de reservista. Ninguém em sã consciência queria servir às Forças Armadas em plenos anos de chumbo.
Neste março que se vai sem águas suficientes que o fechem, meu filho fez 20 anos. Olho fotos dele em minha estante, bem pequenino ao lado da irmã também catatau. Hoje, barba e bigode, carteira de motorista, título de eleitor e carro, certificado de reservista. O tempo permitiu avanços. O tempo dá, o tempo tira.
Propus um acordo com o tempo. Me leve forças do corpo, clareie meus cabelos, não ocultarei as mechas brancas com Tablete de Santo Antônio, em troca, me deixe criança de alma, não permita que perca o encanto pelas insignificâncias tal qual meu mestre Manoel de Barros, quero ser contador de passarinhos em praças públicas, quero contar histórias e rir de mim mesmo. Ao tempo, entrego todo o meu viver.
Caetano encantou com sua “Oração ao Tempo”:
“És um senhor tão bonito/Quanto a cara do meu filho/Tempo, tempo, tempo, tempo/ Vou te fazer um pedido/ Tempo, tempo, tempo, tempo”.
Publicado Jornal Correio em 29/03/2015