segunda-feira, junho 29

Conhece o Jadir?



Sábado, 13 de junho, dia de Santo Antônio. Uberlândia foi agraciada com um espetáculo de tirar o chapéu. Em noite morna, entrecortada vez ou outra por brisa friazinha que fazia questão, em soprar de anjo, vir de encontro a algumas milhares de faces atentas em olhos e ouvidos, e ainda sob um céu estrelado que só. Por mais de hora, viajamos ao som da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Cadeira VIP, quarta fileira.

Obrigado pelo convite. Desfrutamos de programa perfeito, fechando com a abertura de “O Guarani”, do nosso Carlos Gomes, nascido campineiro. Aliás, campineiro ou campinense, foi pena que voou em discussão estéril entre os “nobres” intelectuais em um longe 1956 quando da fundação da Academia Campinense de Letras. Campineiro era para povo da roça “nome pois indigno” para letrados – informações em garimpo, bateia rasa de fragmentos do “Pró-Memória de Campinas”.

Fim de espetáculo e bateu fome de caminhante sem rumo. Tinha corrida de trilha domingo cedo, estava quebrando todas minhas regras pré-carreira. Como diz um grande amigo candango “para quem não tem nada, metade é o dobro”. Lascado, lascado e meio.

Lá fomos nós para uma lanchonete de renome mundial, onde tudo tem o mesmo gosto e cheiro de plástico e isopor. Tempero cheira a ar-condicionado. Freguesia de empinados pescoços. Ao entrar, avaliados da botina mateira velha ao chapéu de lona que uso por costume há muitos anos, aqui e no mato.

Peguei rumo do banheiro para mãos lavar antes de comer. Grande susto. Nunca em toda minha vida de muito correr mundo vi um lugar tão sujo, mas pensa sujeira, multiplica por vinte banheiros químicos em final de rave, estava pior. Saí arrepiado.

Me senti um palhaço, aliás o símbolo de tal cadeia de lanchonetes. Passou. Abriu domingo embruscado, corri. Almoço na Feira da Gente, artesanato e comida boa e a preço justo. Ouvindo um bom chorinho, muita conversa, cerveja redentora. Claro, banheiro. Sigo pela praça cumprimentando artesãos, prosa ligeira com o fazedor de pulseiras de couro, mostro as minhas, trocamos ideias.

Cortei caminho para acarinhar cãezinhos para adoção. Vontade de levar todos. Já na entrada do banheiro, cheiro marcante de água sanitária, e um senhor, com capricho, rodo, balde e cara boa a limpar, incessantemente, piso e vasos. O entra e sai de gente simples, motociclistas – motoqueiro é pejorativo – enfim, nosso povo das ruas a frequentar um banheiro público e limpo. A comparação com a franquia gringa me veio na hora. Este senhor, por nome Jadir, poderia dar aulas de higiene para eles. Horas de praça, várias idas ao banheiro, sempre limpo. Puxei prosa, tiramos fotos juntos, admirei o servidor público que acredita no que faz há 25 anos. Queixa, uma só.

– Pois é doutô, só queria mesmo era um cheirinho bom para agradar mais. Dia seguinte, encontrei o secretário de Serviços Urbanos Eduardo Afonso. Contei caso. Domingo próximo, teremos banheiro da Sergio Pacheco, além de limpo, cheirando eucalipto. Parabéns, Jadir. Serviço público carece de muito mais gente como você.

Jadir me representa!

Ah, lembrando, apesar dos exageros da noite, poeira subiu, fiz um tempo excelente na trilha.







Publicado Jornal Correio em 28 de junho 2015



segunda-feira, junho 22

Monstro de quintal




Foto www.indiogigantesp.com.br


Menino novo em uma Belo Horizonte bela e limpa. Nascido e criado no bairro Funcionários, tivemos o privilégio de sermos uma das últimas gerações a ter verdadeira infância de rua. Descer a Afonso Penna de carrinho de rolimã, da praça da ABC até a Tiradentes, lá embaixo esquina com Aimorés, jogar bola, bentialtas (o bete daqui) só que com bola de meia e casinha de graveto em plena Rua Ceará. Vai fazer isso hoje, seriam considerados esportes ultrarradicais, superando o skydive em muito. Tudo era tranquilo não apenas pelo olhar criança, adultos também sorriam sempre. Cara amarrada, no máximo era fome, naqueles dias.

Já aqui contei que pouco serviam portões ou entradas formais, nossas trilhas e ruas eram os muros e galhos. Passávamos de casa em caso subindo em árvores, escalando obstáculos com facilidade felina.
Mas havia uma casa, muro a muro com a minha que era uma aventura, esta sim radical, de entrar. Por coincidência a mais frequentada por nossa turma, ali tínhamos grandes amigos. O muro dava para um imenso quintal pouco cuidado, repleto de bananeiras de qualidades variadas: prata, ourinho, caturra, maçã, era um festival. Tinha também imensos pés de jabuticaba Sabará, mexericas, figos, e até um pé de maçã, que nunca maçã deu. Bananeira tem troco ou caule? Bom, intuitivamente os chamo de falsos troncos. Estes, após terem seus cachos colhidos se amontoavam pelo chão, dando ao lugar um aspecto lúgubre de terra de ninguém, repleta de esconderijos para fantasia infantil povoar. Mas aí nesse lugar sombreado de pouco sol morava uma fera perigosíssima a qual todos temiam, a ponto de com ela ter pesadelos. Os cabelos da nuca arrepiavam só de imaginar tomar carreira dela, o coração batia em descompasso, suávamos frio. E hiperventilação no respirar. Os mais fraquinhos clareavam os lábios de onde sangue fugia, e muitos desmaiavam em pânico.

Esta fera não era nenhum cachorro imenso de latido grosso, nem algum ser fantasmagórico fruto de imaginação coletiva, nenhuma fantasia criada para afugentar incautos ladrões de fruta. Era nada mais, nada menos do que o empinado e rabugento Galo índio de Seo Aristides, que por sinal nem ele, o dono, conquistava respeito e não foi só uma ou duas vezes que teve a camisa rasgada, costas riscadas de fora a fora por mais palmo de esporas afiadas. Isso, o tal quintal também tinha um galinheiro imenso onde reinava absoluto o galo de Seo Aristides.

A maior prova de valentia entre nós era entrar triunfante pelo portão interno do galinheiro vindo do muro, se esgueirando por entre as plantas, se arrastando como cobra, um olho no galo outro no caminho a despistar a fera que ao mínimo barulho levantava a cabeça além do pescoço, a inclinava mineiramente desconfiado de um lado para outro. Não nos notando, mas nos sabendo, batia forte as asas e disparava seu canto ameaçador de “Aqui tem dono!” Grande parte da infância foi um sobressalto entre nós e o galo. Muita gente saiu riscada em encontros desagradáveis, pois quando em vez o galo fugia do terreiro e aí, não tinha quem ficasse de fora. E lá ia Seo Aristides com vara de bambu imensa a tanger o bicho de volta para seu lugar. Colher ovos era outra aventura, mesmo sabendo onde todos os ninhos ficavam por conta do indez que lá repousava, honraria para quem mais ovos trouxesse.

Galo adoeceu – troça da criançada – fim de uma lenda, com o galo se foi nossa infância.
Crescemos para um mundo começando a ficar sem sonhos. Nunca mais encontrei meus amigos.













segunda-feira, junho 15

Galinhada

Clique no texto abaixo  para ampliá-lo




Nada como uma boa relação patrão/empregado, principalmente na roça onde a lida é bruta. Hora boa para deixar a insatisfação disfarçada aparecer, ou é na derrubada de novilho para tirar os bagos ou na hora de passar gado no tronco, seja por vacina, vermífugo ou curar frieira. Confiando já é temeroso, imagina não. Sei que estes dois se davam bem demais, alem de patrão, parentes. Criados juntos, contrariando música de Milton Nascimento, “Morro velho”; Os laços de amizade se mantiveram fortes mesmo na vida adulta. Um na sede, outro em casa simples, terreiro largo, ajeitada que só.

Dava fim de semana. Era um e os seus almoçando na casa do outro. Conviver sadio de afeição.
Desde moleques, gostavam de mangar um do outro. Sapo em botina, bater chapéu em cachopa de marimbondo só para ver “pizeiro” de cavalo e mergulho em córrego para fugir de bicho enfurecido e venenoso. Afrouxar barrigueira de cavalo para ver arreio rodar, esconder roupa do outro quando de banho em cachoeira. E por aí afora.

Velhos, ainda mantinham saudável bom humor de amigos do peito. Certa feita o patrão amigo e compadre – trocaram batismo de filhos, selando eterna amizade – convidou para almoço em dia não combinado. Lá foram de charrete levantando poeira. Chegando, muita prosa, cerveja, riso, moda de viola e forró pé de serra.

O almoço. Cardápio deixou velhaco esse um. Escargot de entrada, com pinça e tudo mais. Depois fartas porções de Balut, aquele ovo de pata com o embrião quase nascendo, que é cozido e comido “na casca”. Tudo isso e muito mais, fruto das viagens pelo mundão do outro. Trouxe as “iguarias” já tramando sacanagem com o compadre. Na verdade ficaram só os dois à mesa, comadres e filhos estavam tranquilos saboreando bela leitoa pururuca lá na cozinha.

– Ara compadre, quero esses trem não! Isso lá é coisa de comer?
Percebeu a trama. É rir até perder fôlego, entraram de cara para trás na cerveja, passando assim o resto dia.

Tempo passou, a história foi se apagando. Foi quando patrãozinho recebeu recado do afilhado, moleque miúdo canela fina, sempre descalço por querência. Não andava, parecia pé de vento, corria arteiro por todos os cantos. Chegou bufando:
– Padrinho, pai convidou para almoçar amanhã, contou que vai fazer galinhada da pesada.
Recado dado, virou nos calcanhares, deixando o padrinho com mão levantada e frase na goela com resposta.

Dia chegou. Festa, Viola e prosa, manhã passou passarinho.
– Vamos pra mesa compadre?
– Bora, a fome tá assim ó, e você sabe o tanto que gosto de galinhada.

Logo o panelão fumegante saiu do fogão para a mesa. Boca marejou água em fartura. O cheiro do tempero dava para sentir longe. Cachorrada dos vizinhos de quilômetros uivou. Convidado esfomeado atacou primeiro, encheu colher de um arroz bem temperado e lá vieram junto três ou quatro pés de galinha. Cutucou outra ponta da panela, brotaram mais uns tantos pés.
– Uai compadre, mas essa galinhada só tem justo o que eu não como! Só tem pé uai!
– É uma galinhada da pesada compadre, aproveita, reclama não.
Vingança, prato que se come frio, e com muito pé de galinha. Lembrei de Esopo.








Publicado Jornal Correio em 14 de junho de 2015








segunda-feira, junho 8

Preto no branco



Nasci meio esquisito, quase sem melanina, aquilo que dá cor à pele da gente. Coisa da genética, meus avós, russos PO – Puros de Origem – vieram do Cáucaso da região de Cabárdia-Balcária fugindo, judeus que eram, ainda crianças da perseguição bolchevique. Quem não fugiu foi sumariamente executado pelas tropas de Lênin e posteriormente o sanguinário Stalin se encarregou da dizimar quem sobreviveu. Nossa família não era menchevique. Foram perseguidos apenas por serem judeus. Fugiram para os Estados Unidos da América. Meu pai nasceu no Brooklyn, NY. Mas cá prá nós, chega de autobiografia.

O fato é que passei toda minha infância e adolescência alvo de bullying por parte da moçada. Quase sem cor e pêlos, pronto, alvo fácil para gozações. Quando tomava sol em praia ficava parecendo aquele sorvete de três sabores. Peito chocolote, bunda creme, pernas cor de morango.
Tanta gozação me dá o direito, na onda das minorias raciais, de não mais aceitar ser chamado de branco, branquelo ou genérico; similar então nem pensar.

A denominação agora deverá ser cáucasodescendente e não abro mão. Desta forma, as cores preta(o) e branca(o) serão abolidas do dicionário politicamente correto. Por decreto, as substituo por afrodescendente e o já citado cáucasodescendente. Assim sendo, algumas expressões serão alteradas sob pena de ser tachado de preconceituoso. Vamos citar algumas: bandeira branca será agora bandeira cáucasodescendente. Imagina a música na voz de Dalva de Oliveira: “Bandeira cáucasodescendente eu quero paz (…)” fica mais legal, né!?

Pássaro preto vira Pássaro Afrodescendente, o Assum de Gonzagão também: 

“Tudo em vorta é só beleza / Sol de Abril e a mata em frô / Mas Assum afrodescendente, cego dos óio / Num vendo a luz, ai, canta de dor.”
A zebra, assim como a camisa do Galo Mineiro, passa a ter uma listra afrodescendente e outra cáucasodescendente.

Dia de tempestade o céu estará afrodescendente em ameaça torrencial.
Se for de Campinas e não torcer para o Guarani, vibre com as vitórias da Ponte Afrodescendente.
Qual a cor do cavalo cáucasodescendente de Napoleão?
Se a barra pesasse diria em murmúrio “é, meu, a coisa aqui está afrodescendente…”
Daniela Mercury cantaria:

Sou amarrado nessa pele escura/ Na sua cultura / Em sua formosura/ Mas no final tudo é uma só mistura/ A mesma estrutura/Isso é beleza pura.
E todo mundo aqui é afrodescendente e cáucasodescendente.
E todo mundo aqui é afrodescendente e cáucasodescendente”.

Como diz um dos atores mais lúcidos que conheço, Morgan Freeman, em entrevista a Mike Wallace, clareza impressionante ao se referir às datas de consciência disso ou daquilo e como, se não acabar, pelo menos não tornar os preconceitos menos enraizados em nossa cultura, geradora de ódio, minorias e cotas, diz Freedon: “Deixemos de falar sobre ele (o preconceito).”
Aos que me maldisserem por rir de mim mesmo eu solto a mais bela pomba
cáucasodescendente da paz.

Falando sério: Pelo fim das as formas de preconceito já!
Pensem bem, segundo o projeto Genoma: 
“Não existem diferentes raças humanas, mas, sim, uma única espécie a HUMANA!”.














Publicado dia 07 de junho de 2015

segunda-feira, junho 1

Ainda das lagartixas



Domingo passado, falei de minhas lagartixas, isso, as chamo de minhas, pois assim as sinto. As protejo de qualquer maldade humana e, em troca silenciosa e não sabida, elas protegem a mim e minha casa devorando aos montes bichos que mal poderiam causar, baratas, aranhas perigosas, mosquitos, moscas e pernilongos diurnos e seresteiros de orelha. Contei da casa nova e da operação de resgate na qual as levei todas para nova morada.

Pois então, recentemente, mudei de casa outra vez. Vazia que só, mesmo depois de com capricho e detalhes terminar a arrumação de móveis, e tais. Lá entrava, sentia algo faltando. Sentava num canto olhava, espiava pra tudo que era canto, a sensação ficava colada comigo, chegava a impedir andar tranquilo.

Ao deitar para dormir, a falta de alguma coisa ficava aguda, que nem febre quando abraça. Primeiro, arrepios leves que ganham força, começa um tremor malárico fraco que ganha força até ao sol quente. Depois monta brava em delírio. Era isso que sentia, sem febre ou delírio, mas com tremura.
Não está certo, onde mora esse oco, esse nada em torno?

Sentado, madrugada adentro, olhava parede branca onde dançavam sombras de galhos de árvores. Me dava nó apertado em garrote vil, perdia o sono em tanto pensar. Fui levando sensação despejada até começo de abril, quando, do nada, rebolando no piso liso vem ela, lagartixinha miúda, frágil filhote. Era isso, pensei alto, minhas amigas das paredes, brincando de mudar de cor e estalar queixo. Me faltava o corre-corre pelas paredes, o esconde-esconde entre móveis e quadros, o olhar matreiro, debochado de quem se sabe agradando!

Deitei no chão e me pus a conversar manso com ela. Super assustada. Deve ter vindo da rua ou de algum pedaço de mudança, deve ter vindo ovo, pois era bem novinha. Ocupou a casa, era o que faltava. Se saio e demoro, a primeira coisa ao retorno é procurar a bichinha, não aquieto enquanto não encontro.
Acompanho dia a dia seu crescer. Bem alimentada com a quantidade de pequenos bichos em seu self-service particular, é fácil de notar seu desenvolver. Aedes não falta, e vez ou outra em ato de criança, capturo uma mosca, arranco-lhe as asas e a sirvo em bandeja. Bote certeiro e lá vai para o papo.

Quando está transparente a pego nas mãos e vejo/sinto seu coraçãozinho disparado. Banho. A pego encolhida em canto do box. Quase se afogou no chuveiro. Não sabia que lá estava e muito menos ela ao entrar curiosa. Com jeito para não machucar, tirei, coloquei em local seguro a secar. Cresce assim o terror das baratas e aranhas marrons. Se brincar, fica forte e até escorpião encara. Vou recolher mais algumas na outra casa, pois isolamento faz bem a ninguém. Logo povoam a nova pequena casa.

Muitas das vezes, não é o belo relativizado por nossos padrões que está a nos proteger. Lagartixas, sapos, morcegos, cito alguns. Guardiões da vida como hoje conhecemos, e que teimamos em destruir. São bichos que merecem atenção e proteção, sem eles nossa vida aqui na terra seria ou inviável ou um inferno.







Publicado em 31 de maio Jornal Correio de Uberlândia