segunda-feira, fevereiro 15

A ponte





Ele sempre quis saber o que havia lá do outro lado. Ligando uma margem à outra havia uma ponte. Era uma ponte de madeira, beiral caído, algumas tábuas soltas; nada de especial, não chamava atenção. Construída há muito tempo, agora pouco era usada, pois, depois da mudança do traçado da nova rodovia, ela ficou meio que isolada, no meio do mato, ligando nada a lugar algum. Eventualmente, algum tropeiro ou peão-do-trecho a usava para cortar caminho, mas era raro, muito raro. Virou atalho. Não era muito alta, mas uma queda podia ser perigosa, pois o córrego era raso e as águas cristalinas que corriam sob sua estrutura abrigavam muitas pedras.

Em uma de suas cabeceiras a vegetação tomava conta, samambaias imensas, escondiam pequenas teias de aranha que pela manhã brilhavam orvalhadas como joias. Ele gostava de ficar observando a outra margem, sempre quis saber o que havia do outro lado.

Espiava curioso os aglomerados de árvores, os contornos, as sombras. Sons, muitos sons vinham da outra margem do rego d’água. Cantos, rugidos, piados. E ele queria saber o que lá havia, era seu sonho, sua obsessão. Toda tarde, apoiava-se em um galho e ali, quieto, ficava a olhar o lado de lá. Por várias vezes, criou coragem e ensaiava enfrentar o trecho e realizar seu desejo, mas, no derradeiro instante, desistia, esse medo o enfraquecia, sentia que se não o enfrentasse a sua vida não teria sentido. A ponte era seu desafio maior e único.

Naquela dia, acordou decidido, faria a travessia logo mais ao escurecer, saberia, enfim, o que havia do outro lado. Esperou ansioso a chegada da tarde, o sol estava diferente, as nuvens mais brilhantes, uma brisa fria tocou seu corpo; sentiu cheiro de chuva. Não se apoiou como de costume em seu galho preferido, com o pequeno coração em disparada recostou-se na própria ponte e esperou. A noite chegava convidativa, as primeiras estrelas já se faziam anunciar: tênue brilho, esmeraldas e turmalinas. Tinha chegado o momento, ele sabia disso, ia finalmente saber o que havia do outro lado. Ergueu a cabeça, respirou fundo, fechou os olhos, se postou para a arrancada.

Qual a sua decepção; bateu subitamente o medo, o seu incompreensível, irracional medo, não conseguiu se mover. Lutou desesperadamente contra esta força que o impedia de avançar, sem sucesso. Resignado deitou-se no chão e ali se deixou ficar por muito tempo — sofria. Se fez noite fechada e vaga-lumes riscavam o ar bem próximos de sua cabeça. Suspirou e deu uma última olhada para a ponte — apenas um vulto negro agora sem linhas, sem contorno, sem graça; obstáculo. Ainda não foi desta vez que conheceria o que havia do outro lado. Levantou-se amargo, sacudiu a poeira de sua colorida plumagem, passou o bico vagarosamente sob suas asas, sentiu o calor de sua pele, esticou as patas e voou para seu ninho.

Melodiosamente entoou triste canto noturno. Dormiu cansado e, mais uma vez, sonhou com a ponte, e claro, com o que haveria do outro lado. Alguns de nós somos assim, nunca atravessamos nossas pontes, uma pena.








Jornal Correio domingo, 14 de fevereiro 2016




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