segunda-feira, dezembro 10

Paletão



Quem nunca foi às compras em um supermercado? Tenho lá minhas cismas com tais comércios, principalmente em época de festas ou feriados. Aquele monte de "ofertas" me deixa desconfiado, de orelha em pé. Gasto mais tempo olhando data de validade cravadas em minúsculas letrinhas e em locais nada fáceis de encontrar, do que pegando o que fui buscar.

Confesso que prefiro as boas e velhas vendas, daquelas que têm de tudo quanto há, sem a organização intencional, sempre com estratégias muito bem estudadas das grandes redes, a fim de estimular compra que nem se quer fazer. Os produtos estão dispostos cientificamente e psicólogos treinados traçaram estratégias a bem do consumo, nada bom para o consumidor.

Antigas vendas que ainda reinam em muitas cidades do interior de nosso imenso território, carregam um ar de graça em sua desorganização. São acolhedoras e simpáticas, repletas de aromas e cheiros mágicos, com poderes a lhe remeter a qualquer fase de sua vida. O pito de fumo de rolo do Vô, a goiabada da vizinha de rancho, sempre acompanhada de um tenro queijo canastra. Caixas de lápis de cor com perfume de infância. Goma arábica, maria-mole cor de rosa salpicada de bolinhas prateadas, botinas mateiras, sacos de arroz, milho, feijão, linguiça e sempre, um gato sonolento que mal abre os olhos à sua passagem.

A caixa de bacalhau salgado aberta sobre o balcão de madeira gasta. Bingas e fluído azul em ampolas. O barrilzinho de pinga com pequeno coité pendurado na torneira, sempre a lhe dar boas-vindas. Tanta coisa que, se não estiver ao alcance das vistas, é só perguntar: ─ Tem camisinha de lampião?
─ Tem sim senhor, estão logo ali na prateleira atrás das panelas de alumínio batido.

Sabe de tudo, de lugar a preço e aceita catira também. Duas mantas de tear cardadas e fiadas lá em casa, trocadas por linha de anzol, cabeçada de arreio e par de chinelos. Negócio fechado. Todo mundo satisfeito. Dinheiro é o de menos. Com canivete cortam tora de linguiça, bebem uma da boa, mastigam o tira-gosto em sinal de amizade e negócio acertado.

Tem muita venda assim e não carece ir longe. No meio desse devaneio, lá estava eu em supermercado. Já aviso, levo lista feita e raramente saio dela. Aprendi a resistir à profusão de cores, corredores infinitos de tentações e moças oferecendo degustações. Estranho, acho que nunca vi homem servindo patês, cafezinhos ou provas de sucos e tais. Estranho.

Lista na mão, me pego no açougue. Nela constava um quilo de paletão.

Pego minha senha. É, acha que não? Até para balcão de carnes tem senha. Estávamos em três de cá e, de dentro, a atender, quatro. Mesmo assim tive que ouvir o sonoro ─ Pegou a senha? Olhei em volta, mais ninguém que pudesse tumultuar. Sorri e senha peguei.
─ A Senhora? Diz o magarefe. A jovem lhe mostra a senha. Ele nem confere. ─ O que vai ser?

Antes do pedido ela coça os cabelos louros: ─ Qual é a diferença entre paleta e paletão? Olho ligeiro para minha lista e confiro a coincidência. O rapaz de avental branco encheu o peito e deu aula sobre os dois cortes. Nisso, mais gente se juntou, curiosa no assunto. A loira moça, em seriedade e atenção, bateu o martelo. Paletão, vou levar paletão! A outra senhora, senha em punho timidamente lhe perguntou: ­─ E como se prepara?

O pequeno grupo - já nem tão pequeno - se voltou todo em atenção para ela, inclusive o pessoal de dentro do balcão. Ela, com uma descontração absoluta e entre tomadas de ar profundas, pois não se fazia em pausa o contar, explicou o passo-a-passo de um delicioso preparo, com direito a exclamações entusiasmadas que levaram todos a sentir até o sabor do prato. Essa saborosa receita deve exigir prá lá de meia hora de puro fazer/prazer. Além da plateia atenta, a fila atrás de mim foi só aumentando, porém, em círculo e perto da moça dos cabelos loiros e de requintados dotes culinários. Havia algo mágico, com ar de venda naqueles minutos que passaram voando. Como a sair de transe o moço do avental branco: ─ E o senhor? A resposta ele parece que já sabia. ­ ─ Paletão dois quilos, por favor. Ele sorriu. ─ Em cubos como o daquela senhora? Pelo meu olhar já sabia que sim. Enquanto preparava o pedido me pus a memorizar a receita, ia fazer sucesso.

Recebi meu pedido. Olhei a imensa fila que tinha se formado. Não mais pediram senha e só o que conseguia escutar ao me afastar bem devagar era: Paletão, por favor. Paletão, paletão, paletão! Os pedidos foram ficando longe e abafados pelo movimento, conversas de laranjas, alfaces, detergentes...

Dei de ombros em pensamentos: Vai faltar paletão !







Publicado em Diário de Uberlândia em 9 de dezembro de 2018

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