O lençol compartilha sua agonia, mas em deboche ganha vida própria. Teima em lhe aquecer como se cobertor fosse. Descubro os pés em estratégia, nada adianta. Rolo de um lado para o outro na tentativa de achar um sono, que nem no horizonte se avista. Mais pensamentos em rodopio, sempre ruins, sempre atormentadores. Vejo o passar das horas bem na minha frente. Fixo o olhar na janela e acho as estrelas. Foco meu pensamento nelas, viajo. O sono manso vem abraçar. Sobressalto. Algo funesto se materializa do nada, abro os olhos. Testa a suar. O corpo teima em doer mais. Exagero de exercícios, caminhadas puxadas e corridas diárias. Vou me dar um tempo, penso totalmente aceso.
Procuro os sons noturnos, meus companheiros. Nenhum pio de coruja, nenhum grito das inquietas galinhas d'angola. Os grilos em silêncio absoluto. Como é que pode?
Muito bem, me rendo. Penso em sair da cama e ler um bom livro. Há alguns dias que não abro o meu Livro do desassossego, de Fernando Pessoa ou Bernardo Soares.
Talvez o heterônimo menos conhecido de Pessoa. Talvez nem fosse, talvez a simples vontade de assinar a obra assim. A história do guarda-livros iria me tirar mais o sono ainda.
Busquei refúgio no rádio. Perguntariam: por que não liga a TV? Respondo: detesto televisão no quarto e jamais submeteria lugar tão sagrado a ela.
Meia dúzia de vaga-lumes passam em brilho pelo vão da janela, pirilampeiam pelo quarto e voltam para a penumbra do céu de uma estrela. Um conforto, ainda estou vivo. Só, insone, mas vivo e começando a ficar irritado por não conseguir conciliar o sono.
Ligo o radinho. Este sim, companheiro. Não queria música, queria vozes, conversa. Busquei até achar. E para minha grata surpresa era uma prosa com o escritor Gonçalo Júnior. Confesso que não o conhecia até então, mas o seu livro me levou em viagem à infância em minha Belo Horizonte. O título? "O Deus da Sacanagem: a Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro".
Já tinha esquecido aqueles livrinhos e seus desenhos de péssima qualidade, mas que eram disputadíssimos à época e seriam os manuais de iniciação nas artes do prazer de várias gerações.
Fiquei mais fã ainda só em saber que esse cara durante mais de quarenta anos deu nó na censura, na polícia, no Doi-Codi, no DOPS, na igreja, nos fofoqueiros de plantão, na malandragem carioca, nas socialites e em toda a força bruta e "inteligência" da ditadura militar que vivíamos a época,
Uma trecho da sinopse:
" Por décadas, o pacato funcionário público carioca Alcides Caminha viveu no subúrbio de Anchieta e de lá escondeu de todo mundo, inclusive da polícia, que era o desenhista Carlos Zéfiro, autor das famigeradas revistinhas pornográficas em quadrinhos conhecidas como “catecismos”. Entre as décadas de 1950 e 1970, principalmente, com suas narrativas de sexo explícito, Zéfiro fez a alegria de adolescentes, jovens e adultos do sexo masculino, que pouca ou nenhuma informação tinham sobre sexo, em uma época de forte repressão moral, promovida por entidades conservadoras, políticos, juízes, educadores e religiosos.
Primeiro, suas revistinhas foram consagradas por toda Rio de Janeiro. Depois, espalhou-se pelo Brasil. Com um detalhe: eram sempre vendidas às escondidas.”
Já encomendei o livro, depois conto.
Por verdadeiro nome Alcides Caminha, o Zéfiro, não ficou só nos “catecismos”, poucos sabem, mas era também ótimo compositor. Sabem a música A flor e o espinho? A letra é do próprio Alcides, em um longe 1957. A música é de ninguém menos que Nelson Cavaquinho até hoje reverenciada .
Assim como essa obra prima, tem várias outras por ele compostas. Zéfiro foi ainda um grande defensor dos direitos das mulheres e, se falava de sexo, seus textos sempre enalteciam a mulher e o seu direito ao prazer. A igreja queria crucificar esse misterioso filho do cão, como era chamado pelos inimigos.
Pois assim, confortado por tão rica entrevista, sobre um personagem que fez parte de minha infância, fui tranquilo ao encontro do filho de Hipnos.
Mesmo profícua, a noite não foi das melhores. Dormi perto do amanhecer, mas a primeira visão que tive ali, bem na minha frente, no galho da goiabeira que quase adentra o quarto, foi um maravilhoso papa capim, com todo seu singelo e discreto esplendor. Anos sem ver um desses na cidade. Fiquei imóvel e, assim do nada, ele entoou seu indescritível/inconfundível canto. Canto também da minha infância, de meus largos quintais.
Recompensa em dose dupla no recordar de criança, que por várias vezes pensei já em mim não habitar. Ao reencontrá-la criança soube que nunca me abandonou segundo sequer, tive de volta a plena alegria do viver.
Publica em Diário de Uberlândia em 16 de dezembro 2018
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