Tinha nascido em um belo janeiro, farto de chuva e colheita boa. Na roça nasceu, da roça nunca saiu. Se havia um mundão mais perto pra lá da vila, não era de sua conta e nem rompante de ir além possuía. Gostava da vidinha que lhe arrastava. Era feliz.
Por nome Marlubrano Sebastião, segundo nome em homenagem ao santo do dia, veio ao mundo pelas mãos de parteira boa de ofício. Esse vinga! Exclamaram ao ver o miúdo chorar com força. A mãe tinha perdido dois antes dele, daí a grita de alegria.
O primeiro nome, Marlubrano, foi por conta também da mãe. Quando jovem, chegou à vila um apresentador de fita de cinema. Armou tela grande, não muito branca, meio amarelada pelo uso e com uns buracos que possibilitavam, para alegria dos mais novinhos, espiar pedaços de filme fugidos da tela para as paredes das casas e para as mangueiras, assustando galinhas e passarinhos.
O filme era Espíritos Indômitos e não teve jeito dela não se encantar com a beleza daquele moço na cadeira de rodas. Ficou o nome na ideia. Marlon Brando, repetia ela todo dia como se fosse reza. Marlon Brando, Marlon Brando... Mas com o passar do tempo, os afazeres na lida, os seguidos e sofridos partos que deram a ela as duas primeiras filhas, os dois seguintes perdeu as crianças, foi comendo letras e jeito de falar. Marlão Brano, Marlanbrano, assim ficou. Como fim de memória, o que restou da infância e dos sonhos da mãe foi Marlubrano Sebastião, com muito orgulho. Enchia o peito para dizer que tinha nome de artista famoso. A mãe, velhinha, curtida de sol e vento, suspirava melancólica por aqueles olhos azuis em preto e branco do moço do cinema.
E a vida ia mansa para Marlubrano. Aos domingos era dia de feira na vila, e para lá carreavam todos e tudo que se produzia na região. Porco, galinha, rapadura, vestidos de chita, botinas e chapéus Panamás feitos nem tão longe. A cidadezinha virava uma festa de movimento. Desde muito Marlubrano tinha um pensamento de querer. Um relógio de bolso com aquela correntinha de engatar no cinto. Achava chique por demais ver os mais abastados da região, em roda de conversa, tirarem com firmeza o patacão, abrirem a tampa e darem aquela levantada de queixo, com olhar meio que por cima dos óculos, pensar longe e após o estalo gostoso de ouvir ao fechar o bicho, guardá-lo no bolso do paletó ou mesmo no bolsinho de moedas da calça. Vidrava só de ver!
Era seu mais íntimo desejo. Nem as moças do alcoice, cheirando a lavanda e leite de rosas a insinuarem-se nas janelas com seus imensos decotes, competiam com seu desejo de possuir um belo e reluzente relógio de bolso. Se bem que, por falta de dinheiro para comprar o sonho, acabava seus domingos quase sempre nos braços das moças, em suas camas sedosas e macias, pagando-lhes a bebida mais cara da região.
Esse domingo seria diferente. Ficou mais de mês sem sentir cheiro de alfazema e sem tomar cerveja cara com as amigas confidentes. Juntou dinheiro, centavo a centavo e à feira seguiu determinado. Levou pouca coisa para vender, só um cadinho caso tivesse que inteirar.
Mal chegou à vila, foi direto para a banca que vendia jóias de prata, bijuterias coloridas e, claro, relógios de pulso e de bolso, ao gosto do freguês. Posando de conhecedor, olhava um, sentia o peso, jogava de uma mão para outra. Levava ao ouvido, ouvia longe o funcionar da máquina. Gastou bem uma meia hora para decidir. Escolheu o mais bonito da banca. Era dourado, com desenhos em alto relevo, onde se via uma cena que lhe pareceu bíblica. Anjinhos, potes jorrando algo que devia ser vinho e, em um córrego, uma moça a se banhar. Isso tudo ele viu em seu objeto de vontade. Pagou sem pestanejar, nem catirar preço. Foi na lata.
Não dava para saber se o que brilhava mais ao sol era o relógio ou o rosto de Marlubrano.
Amarrou a correntinha na cinta e saiu pela feira a rodar o tão sonhado. Voltou para casa feliz como criança. Mostrou a conquista para mãe, para os agregados do sítio, para cães e gatos, para cavalos, vacas e até para as galinhas.
No anoitecer, banho tomado, sabão de bola perfumado, bateu janta ligeiro e pulou no catre. A luz da lua entrava como vento. Parecia que queria ver a preciosa joia. Passou a noite admirando o relógio. Adormeceu com ele no peito.
Dia seguinte arriou o cavalo cedo e seguiu outra vez para a currutela, fazer o que não fez no dia anterior, de tão envolvido que estava com a compra. Na cinta o relógio.
Apeou na porta da venda e, mal colocou o pé na soleira, um amigo de longa data disse:
─ Dia Marlubrano ! Quantas horas?
Aí veio o estalo. Tinha agora o tanto querer, mas não sabia o uso. Desconhecia número e letras. Não aprendera ler ou escrever. Sem tempo, roça consome vida de criança, ensanguenta mãos em colheita de algodão. Mas, em lampejo de pensamento, devolveu ao companheiro:
─ Calcula?
─ Hum, deve ser umas nove horas.
─ Em riba! Ligeiro se foi venda adentro.
Publicado em Diário de Uberlândia em 24 de dezembro de 2018
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