quarta-feira, novembro 20

Embarcação




Teve uma vida maravilhosa, uma família linda e equilibrada. Claro, problemas normais de uma existência sempre apareciam; aconteceram brigas, discussões, caras feias, maus humores. Mas sempre acabava bem, entre lágrimas e sorrisos sempre se amaram. Passou aperto de dinheiro, salário muitas vezes mal chegava ao fim do mês. Dava-se um jeito. Algumas doenças entre entes queridos, chorou a perda de amigos e parentes, passou por tudo que todos passam, pelo muito que a vida nos reserva de bom e de ruim. No seu balancete, muito mais coisas boas do que ruins. Num campeonato de desgraças, caso existisse nunca estaria no G4, sempre, para sua felicidade, pendurado na zona de rebaixamento.

Filhos criados, netos ao redor, realizado profissionalmente. Poucos, mas bons amigos, era feliz. Não praticava nenhuma religião específica, acolhia o que de bom cada uma oferecia. Da umbanda ao judaísmo, passando pelo budismo, lia muito Kardec. Sabia os salmos de cor. Era ouvinte atento da Mishná. Respeitava e reverenciava todas as coisas vivas, a vida em seu entorno era uma eterna contemplação.

Conhecia o canto de cada pássaro, os nomes das árvores, o gosto dos frutos. Pelo vento sabia se ia chover ou fazer frio, lia com fluência os sinais da natureza. Emburrava com a mesma facilidade que retomava o bom humor, era difícil e ao mesmo tempo fácil conviver com ele, apesar da ciclotimidade, era uma pessoa totalmente do bem. Não havia por que temer a morte, para ele uma simples passagem, uma ida à esquina, um natural ir.

Fizera alguns pedidos para quando sua hora chegasse: que seus órgãos fossem doados, que os verdadeiros amigos o “bebessem” em festa e queria ser cremado. Era só tocar no assunto que mudavam o rumo da prosa. Evitavam o certo?

Passou dessa para melhor dormindo, sem um dia sequer de doença ou hospitalização, literalmente morreu como um passarinho, e não foi de estilingada. Seus órgãos doados sem maiores transtornos. Decidiram em relação ao traslado do corpo que seria encaminhado para cidade onde houvesse crematório e de lá suas cinzas seriam recambiadas para sua família, para a cerimônia fúnebre.

Cremado foi, recolhidas as cinzas e aí, caros leitores, começa o verdadeiro martírio. Para trazer as cinzas foi contratada via internet, facilidades cibernéticas oferecidas em lindos sites, uma funerária com o sugestivo nome de “Embarcação” cujo lema era:

— Partiu dessa? Nós embarcamos!

O pote de cerâmica marajoara com as cinzas foi devidamente recolhido no local combinado e, segundo a empresa, seria entregue à família no dia seguinte. Amanheceu, passou o tempo e nada. Preocupados ligaram para a tal Embarcação, onde uma secretária pouco hábil apenas justificou que ocorrera erro de endereço e as cinzas foram parar em outra cidade, longe do destino final, mas que naquele dia mesmo já estariam no caminho certo e que aqui aportariam em segurança. O morto virara encomenda, estava em pé de igualdade com simples lajotas ou caixas de ramonas. Sexta passa e nada. Agora não adiantava ligar, a Embarcação não funciona nos fins de semana.

A segunda aflita custa a chegar e com ela, depois de longo périplo e atraso, enfim, o bom pó ao lar retorna. Viajou mais em cinzas do que em vida. E assim, fez-se o último de seus pedidos. Em festa, um mar de gente, era mais querido do que imaginara, bebeu o morto por sete dias e sete noites.

Da próxima vez, se houver, usarão sedex ou carta registrada, é mais seguro garanto. E ele, descansou em paz.






 Publicado em Diário de Uberlândia em 17/11/2019

Esperança

Amanheceu dia normal. Céu misturado em azul e brancas nuvens. Às vezes, e erroneamente, esquecemos de prestar atenção no dia que se abre em torno da gente. Seja por noite mal dormida, uma discussão sem pé nem cabeça, uma dorzinha mais forte nas costas ou pernas. Como dizem por aí, se você acordar sem uma dorzinha sequer olhe em volta, pois talvez você nem neste plano está mais. A rotina. Coar café no minimancebo, aguar a horta e as tantas plantas, dar comida para os gatos que, mal se abre a porta, lá estão com miar negativo de fome. O “miau-miau” soa mais como um “não-não”. Devagar vou despertando para o em volta. Sinto o frio da água nos pés descalços a alegrar as vidas enraizadas, observo o beija-flor a pousar em grande folha e se banhar nas pocinhas acumuladas. “Não-não”, murmura princesa. Não imagino o que possa querer agora. Passa roçando na minha perna e some entre os jardins.

Como contei um dia aqui, mudamos para nova casa. Estamos a vesti-la de plantas ao nosso gosto, pois estava meio desnuda para nosso jeito de viver. Duas lindas mudas de trepadeiras recém-plantadas já pediam apoio para subir. Na desorganização de minhas tralhas não achei arame, nem nada que pudesse guiar as novas moradoras de nosso pequeno jardim.

Ideia repentina. Correntes, sim correntes finas seriam perfeitas, pois ofereceriam os vãos para um enroscar seguro. Único jeito era sair à cata. Aproveitando viagem, muita coisinha para fazer. Emoldurar uma bela serigrafia de Antônio Poteiro com suas cores vibrantes, que parecem saltar aos olhos. Época de vermifugar os gatos. Em recuo secular não houve vacinação contra raiva em quase cidade nenhuma do Brasil, falha na produção. Risco de terrível doença voltar como pesadelo. Quanta coisa faltando.

O comércio se aproveita. Vacina antes oferecida por meio de nossos impostos, agora ficou caríssima. Mas temos que vacinar, fazer nossa parte. Recomendo a todos que vacinem seus bichos. A RAIVA MATA. Não esperem cair do céu, os governos não estão empenhados, nem preocupados.

Assim foi passando a manhã. Fome de almoço apertando. Depois de longa procura encontrei as correntes em uma ferragista, exatamente como queria. No pagar, o dono não trabalhava com cartão de débito ou crédito. Sinuca de bico, pois por costume não ando com dinheiro, gasto fácil. Preocupa não, quando passar por esses lados outra vez você me paga. Disse-me aquele senhor calvo e calmo, de olhos azuis opacos pela idade e sorriso nos lábios.

Olhei bem dentro de sua alma, mas ele nunca me viu. Como poderia ter certeza de que eu voltaria para acertar as contas? Tocamos a procurar em bolsos e bolsa. Consegui cavar uma parte. Ficou faltando centavos. Ele riu. – Eu sei que você me pagaria.

Senti-me feliz como criança. Ganhei o dia. A mornice do acordar brilhou. Por pouco tempo. De volta ao carro estacionado notei que o mesmo tinha tomado pancada feia, estava arranhado e torcido. Uma sensação estranha correu corpo afora, da ponta dos pés à nuca. Não era raiva, nem indignação. Afinal era só um carro. Era sentimento de impotência frente ao fato em si. Como alguém faz isso e nem te espera? Tiramos os outros por nós mesmos, pois era o que eu faria e o que meu filho já fez. Pensando solução, de soslaio vi pequeno papel no para-brisa. “Bom dia, esbarrei em seu carro, não vi ninguém por perto. Por favor, me ligue”. Havia o número do telefone e assinatura.

Tremi na base. Pela segunda vez em menos de meia hora duas demonstrações de idoneidade, caráter e credibilidade na raça humana. Logo eu que pouca fé tenho nessa nossa espécie. Parecia aviso, ou melhor, alerta. Há esperança. Liguei para o número do papel e a pessoa se prontificou a custear o estrago. Assim fez. Levei para funilaria. Orçamento feito voltei a fazer contato. Autorizou a arrumação e, antes que eu chegasse em casa, o recibo do pagamento pelo serviço já estava em meu celular.

Lições de vida em dia sem expectativa. Fui chamado atenção para voltar mais para os humanos em crédito e fé. O mal não pode existir sem o bem. A moeda da vida e suas duas faces. Um dia importante a mudar comportamento e postura. Eu, em surto de ignorância e desperdício, dando nada por ele.

Brindei ao dia. Há esperança. Lembrei de um lema woodstokquiano que devemos carregar vida afora. Todo dia é único e precioso.
“Today is the first day of the rest of your life”. Ou como sempre minha mãe poeta Alda insistia em nos dizer: “No fundo, bem no fundo, encontrarás a pérola”.

Há esperança!







Publicado em Diário de Uberlândia em 10/11/2019

6ª Turma

Carrapato, Temporal, Goiaba, Fubá, Bafo, Gatão, Placenta, Gavião, Chico Puto. Escovão, Carteiro, Pirapora, Zé da Bola, Barrica, Turquinho, Tamborete, Braço, Calango. Pode parecer escalação de time de futebol. Longe disto, estes são alguns dos apelidos de nossos colegas da Quinta Turma de Formandos do Curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia, em 1980.

Explicar o nascimento de cada um desses apelidos exigiria um tempo enorme. Assim, acho melhor guardá-los apenas para nós, pois nem nossas esposas, acredito, sabem as verdadeiras razões dessas alcunhas.

Ser estudante naquele tempo significava, por si só, ser um vencedor. Não é fácil aprender a conviver em comunidade. Nossas repúblicas também foram fantásticas escolas de vida. Nem sei como funcionam hoje em dia, mas pelo silêncio parecem ser um marasmo. A conferir.

Bato o remo na correnteza da vida, sigo rio abaixo. Contra a correnteza ou maré não tem jeito.

Um belo e acolhedoro recanto próxima a Claraval, Minas Gerais, a bela Estância de Sant'ana, foi palco de nosso encontro de trinta e nove anos de formados na arte de cuidar dos bichos e, consequentemente, da saúde coletiva humana. Naquele doze de dezembro de 1980 fizemos nosso juramento. Existem dois. Um oficial, outro não. Ambos possuem a mesma essência:

"Juro no exercício da profissão de Médico Veterinário, doar meus conhecimentos em prol da salvação e do bem-estar da vida, respeitando-a tal qual a vida humana e promovendo convívio leal e fraterno entre o homem e as demais espécies, num gesto sublime de respeito a Deus e a natureza."

Este é o não oficial, mais curto, porém mais direto à nossa prática de vida.

Um mar de branca neve caiu em cortejo neste outubro de 2019 pelas estradas que nos levariam ao mágico fim de semana. Eram nossos cabelos, antes fartos e negros, hoje brancos. Alguns nem neve ostentam, pois os perderam. Outros abusam dos Tabletes de Santo Antônio, vaidosos a segurar o tempo.

Estância aquela que carrega em fé o nome da filha de Emerentia e Stollanus Sant'ana, avós de Cristo para aqueles que creem. Linda homenagem.

A neve espalhada na cabeça da moçada e até em sobrancelhas, parecia nos contar da rapidez do tempo, do quanto realizamos e o que ainda temos a realizar. Somos agora médicos veterinários idosos, velhos jamais teimo em repetir, jobens a muito tempo.

Isso ficou claro neste nosso encontro. Carece contar que, de alguns anos para cá, nossos encontros se tornaram anuais. Sinônimo de união e amizade. Cada vez em uma cidade, em que um de nós assume a organização. Cabe aqui lembrar que nos anos redondos (10,20, 30) festejamos na fonte, onde tudo começou.

Se todos os 51 formandos de 1980 compareceram à comemoração? Não foi possível. Dois já mudaram de plano e hoje passeiam entre estrelas, pura energia cósmica. Outros, por motivos pessoais não puderam ou não quiseram ir. Às vezes o passado pode trazer lembranças não muito boas, um tanto amargas.

Para quem esteve presente ficou clara a alegria do reencontro. Crianças grandes nas risadas, nas brincadeiras, no contar histórias de nossa bela época republicana e de nosso dia-a-dia atual. Quantas experiências de vida juntas em um só lugar. A importante participação de nossas companheiras de vida, motivando e integradas ao festivo contexto. Não deve ser fácil aguentar essesantigos adolescentes e nossos reavivamentos. Este um dos motivo de tamanho companheirismo. Alguns com seus filhos hoje adultos como a cuidar dos pais.

Ah, repúblicas! Mesmo aqueles que eram daqui saborearam a vida responsavelmente louca/sadia de nossas casas sem portas/tramelas, sempre prontas a receber.

No encontro na pequena presépio Claraval, festa.

Antes, na capela da propriedade realizou-se missa, pessoas de grande devoção, foi emocionante. Depois muito churrasco, chopp, música e, claro, molecagem.

Bom demais ver a moçada feliz com a vida e profissão.

Sem falsa modéstia, pois já ouvimos isso de muitos, a Medicina Veterinária da UFU tem um grande divisor de águas: antes e depois da 5ª Turma. Modéstia? Às favas!

Em 2020 a festa dos 40 será em aqui em Uberlândia, berço de nossos primeiros passos no cuidar de gente e bicho. Que venham todos. A festança vai ser cigana. Se puder dura semana ou mais.

Digo a vocês com toda segurança do mundo que, se tivesse que começar tudo outra vez faria Medicina Veterinária. Na UFU, é claro!






Publicado em Diário de berlâdia em 03/11/2019

Procissão



Longa e silenciosa procissão. Em silêncio oratório seguem com seus coloridos estandartes escarlates, outros tantos de vivo amarelo marcavam cordão a um canto da imensa fila. Alguns empunhavam o que parecia ser bastões. A formação militar espantava. Organizados e objetivos abriam caminho pelo asfalto quente como se este não os incomodasse em nada, tamanha a concentração e objetividade.

À distância segura acompanhei penitente aquele desfile. Não porque me sentisse ameaçado ou coisa parecida, pelo menos de imediato mal fazer não parecia estar nos planos deles. Não queria interferir e menos ainda ser responsável por algum desacerto naquele penitente caminhar. Olhar me bastava. A rigidez de comportamento assustava. Não havia perdão, misericórdia para com aquele, qualquer lá fosse o motivo; exaustão, distraimento, tropeçasse ou deixassem cair por terra seu estandarte. Passavam por cima, pisoteavam. Parecia que o indivíduo isolado nada representava, o todo sim era importante, o serpenteado movimento daquelas imensas filas, ao botar mais atenção notava-se nitidamente que eram duas, uma ladeando a outra, mas em movimentos militarmente sincronizados, como se ligação visceral entre ambas existisse. Aquele deslocamento sincrônico era mágico e vivo por inteiro.

Longa e dupla fila virava esquinas, imensos quarteirões, gigantesca multidão. Nem o menor barulho se fazia ouvir. O pisar, apesar de ligeiro, era leve e calculado, objetivo não era chamar atenção. Acostumada a vista à observação, notava-se ao largo, em vários pontos outros empunhando imensas bandeiras como velas de jangadas ao sabor de um mar pouco amigável. O vento as fustigava sem piedade e não raro as fazia tombar. Rápidas, como que receosas de repreenda, aprumavam e deslizantes seguiam caminho.

Lembrou cortejo preparando colorido tapete como os de Ouro Preto e santa sexta-feira. Cantarolei baixinho Milton: “Velejar, velejei/No mar do Senhor/Lá eu vi a fé e a paixão/Lá eu vi a agonia da barca dos homens”… Quietude e prece. A falta de tolerância com os tropeços alheios tirou a fé de questão. Troupe guerreira em busca de novas conquistas – assim as vi por minutos.

O avanço era descomunal, o amarelo e vermelho pintavam o asfalto. Aquarela em permanente movimento. Acácias e flamboyant aos poucos esquartejados seguiam para preparo de banquete. Haveria festa e dança para os vencedores?

A frase “ou o Brasil acaba com a Saúva ou a Saúva acaba com o Brasil” demonstrou mais uma vez ser descabida. Muito antes das cidades de ouro dos nossos índios, dos estes sim invasores portugueses; muito antes das capitanias hereditárias e de gritos de uma independência que nunca chega que elas aqui estão. Cumprem sim dever cívico de manter o que resta de nossas terras férteis e adubadas. Prejuízo? Não, chamo de desforra.

Se pragas são, então aqui estão duas a conviver em harmônica inimizade. Homem e saúva. A saúva não acabou com o Brasil, nós humanos, todos os dias, aos poucos, mas metodicamente, nos esforçamos ao máximo para cumprir o papel creditado às pequenas formigas. E, se o objetivo é esse, fiquem (in)tranquilos. Estamos conseguindo. Vorazes gente-saúva, insensíveis a pisotear sem piedade qualquer que cruzar nosso caminho. Egoísmo.

Sem acácias, flamboyant ou cores. Não haverá festa de fartura coletiva. Solidão.






Publicado em Diário de Uberlândia em 27/10/2019

Sabiás




Seis horas da tarde. O calor parece grudar no corpo. O sol se foi, mas deixou rastro em paredes, chão, caixas d'água e piscinas. No meio do dia passou mansa nuvem escura como imenso Zeppelin. O vento norte foi levando a navegar em céu/mar tranquilo. Estava a revisar telhado na espera de chuva e acompanhei seu calmo flutuar deitado no barro quente das telhas. Terra à vista! Pensei ouvir. Ventos fracos a favor, firme no leme, “navegar é preciso”! Sem pressa se arrastou longe. Nem uma gota de presente, nem um dobrão de prata ou ouro nos deixou. Simplesmente se foi em fantasia.

Segui o resto do dia a fazer vasos de plantas, mudas e começar a dar nova cara ao cantinho novo. Novo para nós, construção das antigas, sólida. Do tempo em que massa de cimento era até verde forte. Colocar nosso sino de ferro, com uma bela coruja forjada no topo, deu trabalho. A broca de videa, mesmo em martelete, chorou fumaça e pó. A noite chegou, mas o calor abraçou a escuridão. Nem um ventinho. As folhas pareciam imobilizadas. Quietas que só.

A quebrar silêncio, sinfonia de cigarras. Dois tons. Machos em prosa de namoro. Só eles cantam em um tentar encantar parceira.

Cigarra canta, sinal de chuva longe, diziam. Hoje não dá para confiar mais. Nos estertores de vida luz sabiás cantaram seu melodioso chamado, hora de recolher. E eram tantos…

Pois não há de ver que passeando na web, procurando saber sobre passarinhos, me deparei com o site “Conexão Planeta” e curiosa história de um de nossos queridos bichos de pena! Um Pavaroti, uma Nina Simone, uma Amy Winehouse das aves. Os sabiás da super urbana São Paulo deram pra cantar à noite? Mudaram hábitos. Acho que cansaram de competir com o inferno daquela megalópole. Como namorar no meio de tanto barulho? Achei que o barulho lá só durava à luz do dia, mas contaram que não, visto que os sabiás acharam alguns momentos noturnos para encontrar par.

Conta-nos Sandro Von Matter, no Outras Mídias (outraspalavras.net/outrasmidias) que a canora ave inspirou com seu belo canto poetas consagrados como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Chico Buarque. Mas entre todas as homenagens, uma se destaca na memória popular. O poema Canção do Exílio, onde o poeta Gonçalves Dias imortalizou a ave em seus famosos versos: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o Sabiá”.

Von Matter, em seu belo texto intitulado A incrível insônia do sabiá-laranjeira, conta que estes delumbrantes cantores “foi (ram) alvo de uma das maiores polêmicas do mundo das aves. Inesperadamente, populações da espécie residentes em algumas áreas da cidade de São Paulo trocaram o dia pela noite e passaram a cantar por toda a madrugada. De um momento para outro, seu magnífico cântico, antes idolatrado em poemas, se tornou o centro de milhares de reclamações por parte dos paulistanos incomodados pela cantoria fora de hora.” (outraspalavras.net/outrasmidias/em-sp-a-incrivel-insonia-do-sabia-laranjeira).

Como se vê, paulistano deve ser de outro planeta, com muitas e, claro, superlativas exceções. Tamanha mudança de hábitos que deveria pelo menos ser festejada pela população, tão carente de suaves melodias. O povo anda irritado com tanto barulho de passarinho. Onde já se viu? Vai cantar na roça, no mato. Nosso barulho de estimação ronca alto e cheira a diesel. Que cara de pau desses bichos! Resmungavam indignados. Por conta disso falo que não dá mais para se fiar nem na natureza, pois esta pegou jeito humano no comportar. Cigarra cantando chama chuva ou a espanta?

Tanajuras não enxameiam mais para a alegria de nós crianças antigas que, por prazer e molecagem, as caçavam para fazer rinha, ver briga. Mera e inocente morbidez de quem teve infância pé no chão. Havia ainda o prazer de uma bela fritada das bundas dessas formigas com farinha, feita em fogãozinho de tijolo, no fundo de imenso quintal verde de tanta fruta. E os caras reclamando de "algazarra” de melodia de sabiás. Durma-se com um barulho desses.

Alguma coisa acontece no meu coração "Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas esquinas Da deselegância discreta de tuas meninas"

Ah! Caetano, tomara eu ver!
“Navegar é preciso”. Viver? Ainda busco entender.




Publicado em Diário de Uberlândia em 20/10/2019

Fábula com PH




Esopo contava como se fosse sapo, mas se assim tranquilo fosse, o sapo iria comer o escorpião, pois é um de seus grandes predadores. Aliás, esse era o motivo do bicho querer atravessar o rio. Ficou sabendo que do lado de lá tinha muita cobra e onde tem cobra sapo não canta, pois vira janta. Já de cá era uma saparia danada e ele vivia andando pelos cantos a se esconder. Assim, lá foi ele buscar recurso para atravessar aquela imensidão de água. Se fosse nos dias de hoje seria fácil, bastaria se misturar a alguma mudança que iria tranquilamente parar do outro lado, sem maiores problemas.

Aí veio La Fontaine e misturou tudo. Sabem como é, quem conta um conto acrescenta um ponto e assim vai. Fica do jeito que cada um quer. A travessia aconteceu de fato, mas foi feita por uma tartaruga que, velhaca que só, também veio com aquele papo de não levar o escorpião, pois temia ser picado no meio do rio e assim morreriam os dois.

O escorpião retrucou. Como vou te picar cara! Primeiro, seu casco é duro como pedra e, mesmo que eu quisesse, apenas o arranharia. Não estou a fim de virar comida de peixe, caso você se sentisse ameaçado. Segundo, se estou fugindo de sapo não vou querer parar dentro d’água.

Além do mais, como vou saber se você não vai me sacanear, mergulhando atrás de um casco de saia ou de algum peixe apetitoso?
Tem lógica, pensou o quelônio. Se lento no andar, era veloz em pensar. Durante a travessia a conversa foi nascendo. Lembraram da história da cigarra e da formiga, que se matou de trabalhar, mas que, com as reformas na previdência, não conseguiu se aposentar. Por conta disto ficou a ver navios e viver de trocados como agente da cigarra. Esta, mesmo com os cortes na área da cultura e com um ministro sem noção, conseguia pontas em novelas e talk shows. Assim, logrou comprar casinha nos estertores do projeto Minha Casa Minha Vida. Com isto ainda cedeu um quartinho nos fundos para a formiga descansar os ossos e o corpo, todo doído de tanto carregar peso vida afora e nunca conseguir uma consulta no SUS para se tratar.

Falaram do sapo que queria ficar do tamanho de um boi e que se lascou de tanta bomba, pensa, anabolizantes de todo tipo. Até de cavalo tomou. Resultado? Também está na fila do SUS no aguardo de um transplante de fígado. Depois de muito falar da vida alheia, lá pelo meio do rio…. Não, não houve a sacanagem da ferroada. Rolou foi a ideia de montarem um negócio de travessia com o nome TartaEscorpion Transportes Náuticos and Rescue. Nome em inglês dava mais moral e já que o presidente humano era obcecado por tio Sam, poderiam até pedir um adiantamento no BNDES. Ficariam ricos, já que o bicho homem estava de sacanice com a natureza, com total vista grossa ao fogo e represas. O empreendimento poderia ser tipo um SAMU de bichos, nas horas de sufoco. E, quando tivesse tranquilo, fariam passeios turísticos ou de guerrilha, levando bichos para atormentar as gentes.

A tartaruga balançou a cabeça várias vezes, molhou a boca e retrucou: Meu, você é bom de negócios! Numa simples travessia criamos uma parceria. Qual o segredo de tanta imaginação? Ah, cara! Quatrocentos milhões de anos aqui no planeta, você tem que ver a negociação que meus ancestrais fizeram com um meteoro. Convenceram a figura a bater na terra bem no meio da península de Yucatán, no México, originando a cratera de Chicxulub e acabar com tudo, menos com os de minha espécie e as baratas que eram e são até hoje nossa mais saborosa comida. Foi um período bem legal, sem concorrência, gente ou políticos. Pena que durou pouco, apenas alguns milhões de anos. Tínhamos acabado de sair da água, mas a bicharada em terra era imensa e feia que doía. Então, nasceu a ideia de termos o planeta só pra nós. Bons tempos, bons tempos.

Cara, vocês eram fera para negócio desde Cretáceo! Na verdade, era o início do Paleógeno, corrigiu o escorpião. Imagina que bom pra nós, pois no começo foram dois anos de total escuridão. Bom demais! Ai, além de tudo, um monstro de conhecimentos essenciais! Sua ideia é simplesmente genial! Tô dentro! Começamos quando? Animou-se a tartaruga.

Que nada, minha amiga cascuda! Nosso negócio será apenas uma startup, “essa é a minha natureza e nada poderia ser feito para mudar o destino.” Vamos rachar de ganhar grana mano!







Publicado em Diário de Uberlândia  em 13/10/2019