"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
quarta-feira, novembro 20
Procissão
Longa e silenciosa procissão. Em silêncio oratório seguem com seus coloridos estandartes escarlates, outros tantos de vivo amarelo marcavam cordão a um canto da imensa fila. Alguns empunhavam o que parecia ser bastões. A formação militar espantava. Organizados e objetivos abriam caminho pelo asfalto quente como se este não os incomodasse em nada, tamanha a concentração e objetividade.
À distância segura acompanhei penitente aquele desfile. Não porque me sentisse ameaçado ou coisa parecida, pelo menos de imediato mal fazer não parecia estar nos planos deles. Não queria interferir e menos ainda ser responsável por algum desacerto naquele penitente caminhar. Olhar me bastava. A rigidez de comportamento assustava. Não havia perdão, misericórdia para com aquele, qualquer lá fosse o motivo; exaustão, distraimento, tropeçasse ou deixassem cair por terra seu estandarte. Passavam por cima, pisoteavam. Parecia que o indivíduo isolado nada representava, o todo sim era importante, o serpenteado movimento daquelas imensas filas, ao botar mais atenção notava-se nitidamente que eram duas, uma ladeando a outra, mas em movimentos militarmente sincronizados, como se ligação visceral entre ambas existisse. Aquele deslocamento sincrônico era mágico e vivo por inteiro.
Longa e dupla fila virava esquinas, imensos quarteirões, gigantesca multidão. Nem o menor barulho se fazia ouvir. O pisar, apesar de ligeiro, era leve e calculado, objetivo não era chamar atenção. Acostumada a vista à observação, notava-se ao largo, em vários pontos outros empunhando imensas bandeiras como velas de jangadas ao sabor de um mar pouco amigável. O vento as fustigava sem piedade e não raro as fazia tombar. Rápidas, como que receosas de repreenda, aprumavam e deslizantes seguiam caminho.
Lembrou cortejo preparando colorido tapete como os de Ouro Preto e santa sexta-feira. Cantarolei baixinho Milton: “Velejar, velejei/No mar do Senhor/Lá eu vi a fé e a paixão/Lá eu vi a agonia da barca dos homens”… Quietude e prece. A falta de tolerância com os tropeços alheios tirou a fé de questão. Troupe guerreira em busca de novas conquistas – assim as vi por minutos.
O avanço era descomunal, o amarelo e vermelho pintavam o asfalto. Aquarela em permanente movimento. Acácias e flamboyant aos poucos esquartejados seguiam para preparo de banquete. Haveria festa e dança para os vencedores?
A frase “ou o Brasil acaba com a Saúva ou a Saúva acaba com o Brasil” demonstrou mais uma vez ser descabida. Muito antes das cidades de ouro dos nossos índios, dos estes sim invasores portugueses; muito antes das capitanias hereditárias e de gritos de uma independência que nunca chega que elas aqui estão. Cumprem sim dever cívico de manter o que resta de nossas terras férteis e adubadas. Prejuízo? Não, chamo de desforra.
Se pragas são, então aqui estão duas a conviver em harmônica inimizade. Homem e saúva. A saúva não acabou com o Brasil, nós humanos, todos os dias, aos poucos, mas metodicamente, nos esforçamos ao máximo para cumprir o papel creditado às pequenas formigas. E, se o objetivo é esse, fiquem (in)tranquilos. Estamos conseguindo. Vorazes gente-saúva, insensíveis a pisotear sem piedade qualquer que cruzar nosso caminho. Egoísmo.
Sem acácias, flamboyant ou cores. Não haverá festa de fartura coletiva. Solidão.
Publicado em Diário de Uberlândia em 27/10/2019
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