Como contei um dia aqui, mudamos para nova casa. Estamos a vesti-la de plantas ao nosso gosto, pois estava meio desnuda para nosso jeito de viver. Duas lindas mudas de trepadeiras recém-plantadas já pediam apoio para subir. Na desorganização de minhas tralhas não achei arame, nem nada que pudesse guiar as novas moradoras de nosso pequeno jardim.
Ideia repentina. Correntes, sim correntes finas seriam perfeitas, pois ofereceriam os vãos para um enroscar seguro. Único jeito era sair à cata. Aproveitando viagem, muita coisinha para fazer. Emoldurar uma bela serigrafia de Antônio Poteiro com suas cores vibrantes, que parecem saltar aos olhos. Época de vermifugar os gatos. Em recuo secular não houve vacinação contra raiva em quase cidade nenhuma do Brasil, falha na produção. Risco de terrível doença voltar como pesadelo. Quanta coisa faltando.
O comércio se aproveita. Vacina antes oferecida por meio de nossos impostos, agora ficou caríssima. Mas temos que vacinar, fazer nossa parte. Recomendo a todos que vacinem seus bichos. A RAIVA MATA. Não esperem cair do céu, os governos não estão empenhados, nem preocupados.
Assim foi passando a manhã. Fome de almoço apertando. Depois de longa procura encontrei as correntes em uma ferragista, exatamente como queria. No pagar, o dono não trabalhava com cartão de débito ou crédito. Sinuca de bico, pois por costume não ando com dinheiro, gasto fácil. Preocupa não, quando passar por esses lados outra vez você me paga. Disse-me aquele senhor calvo e calmo, de olhos azuis opacos pela idade e sorriso nos lábios.
Olhei bem dentro de sua alma, mas ele nunca me viu. Como poderia ter certeza de que eu voltaria para acertar as contas? Tocamos a procurar em bolsos e bolsa. Consegui cavar uma parte. Ficou faltando centavos. Ele riu. – Eu sei que você me pagaria.
Senti-me feliz como criança. Ganhei o dia. A mornice do acordar brilhou. Por pouco tempo. De volta ao carro estacionado notei que o mesmo tinha tomado pancada feia, estava arranhado e torcido. Uma sensação estranha correu corpo afora, da ponta dos pés à nuca. Não era raiva, nem indignação. Afinal era só um carro. Era sentimento de impotência frente ao fato em si. Como alguém faz isso e nem te espera? Tiramos os outros por nós mesmos, pois era o que eu faria e o que meu filho já fez. Pensando solução, de soslaio vi pequeno papel no para-brisa. “Bom dia, esbarrei em seu carro, não vi ninguém por perto. Por favor, me ligue”. Havia o número do telefone e assinatura.
Tremi na base. Pela segunda vez em menos de meia hora duas demonstrações de idoneidade, caráter e credibilidade na raça humana. Logo eu que pouca fé tenho nessa nossa espécie. Parecia aviso, ou melhor, alerta. Há esperança. Liguei para o número do papel e a pessoa se prontificou a custear o estrago. Assim fez. Levei para funilaria. Orçamento feito voltei a fazer contato. Autorizou a arrumação e, antes que eu chegasse em casa, o recibo do pagamento pelo serviço já estava em meu celular.
Lições de vida em dia sem expectativa. Fui chamado atenção para voltar mais para os humanos em crédito e fé. O mal não pode existir sem o bem. A moeda da vida e suas duas faces. Um dia importante a mudar comportamento e postura. Eu, em surto de ignorância e desperdício, dando nada por ele.
Brindei ao dia. Há esperança. Lembrei de um lema woodstokquiano que devemos carregar vida afora. Todo dia é único e precioso.
“Today is the first day of the rest of your life”. Ou como sempre minha mãe poeta Alda insistia em nos dizer: “No fundo, bem no fundo, encontrarás a pérola”.
Há esperança!
Publicado em Diário de Uberlândia em 10/11/2019
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