quarta-feira, novembro 20

Sabiás




Seis horas da tarde. O calor parece grudar no corpo. O sol se foi, mas deixou rastro em paredes, chão, caixas d'água e piscinas. No meio do dia passou mansa nuvem escura como imenso Zeppelin. O vento norte foi levando a navegar em céu/mar tranquilo. Estava a revisar telhado na espera de chuva e acompanhei seu calmo flutuar deitado no barro quente das telhas. Terra à vista! Pensei ouvir. Ventos fracos a favor, firme no leme, “navegar é preciso”! Sem pressa se arrastou longe. Nem uma gota de presente, nem um dobrão de prata ou ouro nos deixou. Simplesmente se foi em fantasia.

Segui o resto do dia a fazer vasos de plantas, mudas e começar a dar nova cara ao cantinho novo. Novo para nós, construção das antigas, sólida. Do tempo em que massa de cimento era até verde forte. Colocar nosso sino de ferro, com uma bela coruja forjada no topo, deu trabalho. A broca de videa, mesmo em martelete, chorou fumaça e pó. A noite chegou, mas o calor abraçou a escuridão. Nem um ventinho. As folhas pareciam imobilizadas. Quietas que só.

A quebrar silêncio, sinfonia de cigarras. Dois tons. Machos em prosa de namoro. Só eles cantam em um tentar encantar parceira.

Cigarra canta, sinal de chuva longe, diziam. Hoje não dá para confiar mais. Nos estertores de vida luz sabiás cantaram seu melodioso chamado, hora de recolher. E eram tantos…

Pois não há de ver que passeando na web, procurando saber sobre passarinhos, me deparei com o site “Conexão Planeta” e curiosa história de um de nossos queridos bichos de pena! Um Pavaroti, uma Nina Simone, uma Amy Winehouse das aves. Os sabiás da super urbana São Paulo deram pra cantar à noite? Mudaram hábitos. Acho que cansaram de competir com o inferno daquela megalópole. Como namorar no meio de tanto barulho? Achei que o barulho lá só durava à luz do dia, mas contaram que não, visto que os sabiás acharam alguns momentos noturnos para encontrar par.

Conta-nos Sandro Von Matter, no Outras Mídias (outraspalavras.net/outrasmidias) que a canora ave inspirou com seu belo canto poetas consagrados como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Chico Buarque. Mas entre todas as homenagens, uma se destaca na memória popular. O poema Canção do Exílio, onde o poeta Gonçalves Dias imortalizou a ave em seus famosos versos: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o Sabiá”.

Von Matter, em seu belo texto intitulado A incrível insônia do sabiá-laranjeira, conta que estes delumbrantes cantores “foi (ram) alvo de uma das maiores polêmicas do mundo das aves. Inesperadamente, populações da espécie residentes em algumas áreas da cidade de São Paulo trocaram o dia pela noite e passaram a cantar por toda a madrugada. De um momento para outro, seu magnífico cântico, antes idolatrado em poemas, se tornou o centro de milhares de reclamações por parte dos paulistanos incomodados pela cantoria fora de hora.” (outraspalavras.net/outrasmidias/em-sp-a-incrivel-insonia-do-sabia-laranjeira).

Como se vê, paulistano deve ser de outro planeta, com muitas e, claro, superlativas exceções. Tamanha mudança de hábitos que deveria pelo menos ser festejada pela população, tão carente de suaves melodias. O povo anda irritado com tanto barulho de passarinho. Onde já se viu? Vai cantar na roça, no mato. Nosso barulho de estimação ronca alto e cheira a diesel. Que cara de pau desses bichos! Resmungavam indignados. Por conta disso falo que não dá mais para se fiar nem na natureza, pois esta pegou jeito humano no comportar. Cigarra cantando chama chuva ou a espanta?

Tanajuras não enxameiam mais para a alegria de nós crianças antigas que, por prazer e molecagem, as caçavam para fazer rinha, ver briga. Mera e inocente morbidez de quem teve infância pé no chão. Havia ainda o prazer de uma bela fritada das bundas dessas formigas com farinha, feita em fogãozinho de tijolo, no fundo de imenso quintal verde de tanta fruta. E os caras reclamando de "algazarra” de melodia de sabiás. Durma-se com um barulho desses.

Alguma coisa acontece no meu coração "Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas esquinas Da deselegância discreta de tuas meninas"

Ah! Caetano, tomara eu ver!
“Navegar é preciso”. Viver? Ainda busco entender.




Publicado em Diário de Uberlândia em 20/10/2019

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