segunda-feira, dezembro 11

O trecho – quarto ato


São Sebastião não tinha padre, assim fixado, morando. Vez ou outra aparecia um na vila, coisa de espaço grande. Quando vinha fazia tudo no atacado, casamento, batizado, crisma, confissão: perdoava uns, penitenciava outros. Se o pecado era grande demais e a procuração de Deus não cobria, ai era aguardar o destino.
Até extrema-unção atrasada o padre dava.
Sem presença do moribundo, esse havia a tempos partido, mas a alma mesmo tarde era encomendada.

Morando lá apenas três irmãs missionárias, cuidando das coisas das coisas do espírito.
Certa feita teve festa. Fartura de comida e bebida, uns mataram tatu atropelado e fizeram farofa outro trouxe carneiro para assar.
As irmãs comeram enganadas achando que era frango e vaca.
No dia seguinte mesmo depois de elogiar a comida passaram mal ao saberem da procedência. Coisa da cabeça, guia em tudo até no gosto.

O padre por nome Dázio, este sim, gostava de carne de caça.
Dia daqueles ganhamos um rabo de jacaré, de tanta dó do bicho, cozinhou mal, ficou com gosto de couro, de baixeiro velho até Tupã o cão das caçadas fez pouco, quis não.
Jogar fora nem pensar. Veio a lembrança, toca a oferecer para Padre Dázio, ele estava na vila. Que maldade, será pecado?

Cobrimos a tigela com o mais alvo dos panos de prato da casa, linho branco com pequenas flores bordadas em azul e rosa, um primor de beleza. Chegamos à tardinha na casa paroquial, já escurecendo, o padre nos recebeu com um sorriso maroto, sentiu o cheiro do tempero – pouco via era ruim das vistas, pois não é que comer com os olhos não podia, nossa salvação.
O padre comeu ao enfaro – lambeu até osso, fazia gosto de ver.
E nós, livre ficamos do jacaré de má sina, pelo menos morreu por causa uma – alimentou padre. Cruzamos olhar cúmplice, sorrindo para dentro, de mãos dadas tomamos o caminho de volta, Futrica e Tupã a correr conosco rolando no pó – alegria de bicho.

As tardes e as noitinhas na vila não eram de passar. O vento ficava quieto, ofegante e cansado. O sol teimava em aquietar-se na distância, mas não sumia de todo rápido, era manso o seu sumir. Carregava de tinta e cor o céu, as matas e os pastos. Dava uma vontade e de não-sei-o-que-dava-de-vontade, era uma meia tristeza longe, amarro de boca de estomago – triste tristeza que vinha com a tarde finzinha. Doía. De certo era portanto que as gentes se matavam nessa hora. Choro preso.
Depois o breu. A noite enfeitada, já contei, estrelas adoeciam o céu de tantas que tinham. Nas noites sem lua então, dava sombra na terra-pó. Sombra de estrela.

Era nessas noites que nos vinham as luzes.
Eu mais Bia gostávamos de ir até fora da vila – em estrada que seguia rumo ao posto de leite, laticínio resfriador, um ermo.

Tinha um mata burro. Ficava no tope do trecho que rumava para o rio lá longe. Sentávamos lá quase sempre no silêncio. Namoro de respiração, carecia muito falar não. Contávamos sonhos, criávamos um mundo nosso, nossinho de fantasia, belo/lindo, puro sonho de tão bem sonhado.

Na calma dos contos ela devagar se anunciava. Tímida, primeiro brilhava rente ao chão quase sempre no meio da estrada. Parecia se oferecer. Candura. Flutuava com ainda pouco brilho prata-vermelho-azul palmo ou dois do chão. Como a buscar atenção aumentava o brilho, bailava em curvas rápidas para bem alto.

Sumia. No repente aparecia a poucos passos de nós já grande e agitada corria em rapidez de passarinho pela estrada, veloz. Sem aviso se atirava ao céu em frenética dança: rodopiava, parava se fazia vir/ir. Parava, parava. Apagava um pouco e outra vez vinha devagar para nós. Sem medo, sem som, sem vento. Só luz e movimento. Sumia. Cansou da gente sussurrávamos. Quando apercebíamos seu brilho em nossas costas na entrada da vila antes do limite criado, que era a sombra, a iluminação vermelha da lâmpada do primeiro poste. De lá ainda não tinha passado. Ainda.

Movimento rápido outra vez, sem ser brusco voltava a sumir para agora brilhar no meio do pasto. Riscava um oito imenso e com rastro no alto céu e sumia, agora só amanhã. Hora era uma sozinha, hora eram muitas. Ficavam perto, muitas ficavam longe muito longe lá no contorno do vale. Luz de carro dizia uns – mas como se lá nem estrada tinha, nem atalho, e até hoje não tem.
Uma feita eu mais Vilson Gato – nome de batismo mesmo Gato, não era por assim chamado apelido não – coisa de Padre Dázio? Ninguém afirma – resolvemos correr atrás delas.
Brincou conosco, corremos mais de quilometro e ela arteira na frente. Sumiu outra vez, zombeteira, já estava lá junto de Bia, e ela não via, só Vilson e eu cá de longe.

Carece sei eu de falar mais da aparência das luzes, difícil contar. Um diamante com luz dentro. Pronto descrevi, era assim. Ou quase, tem coisa sem jeito de contar, palavras faltam, estão aqui as lembranças não saem recontadas – difícil.
Tento: acende luz dentro do puro cristal, vai ver o que víamos toda noite no céu, na estrada, no pasto no mato – um brilho sem calor – suave e vivo. Era assim. Maravilhoso.

Gente estudada por lá esteve observando, vieram da capital. Aparelhamentos e muito observar. Ficaram uma semana – a luz só deu o ar da graça duas vezes – e rapidinho, acho que não gostou da cátedra – os professores se foram frustrados mas crédulos pois viram e filmaram, não contaram mais nada para nós da vila. Arrogância de doutor de papel, só, conhecedor nada da vida das gentes. Levou muito, nada, as luzes ficaram nossas.

Um dia, nem te conto, mas tenho que contar. Era um sábado – tarde da noite para nossa vila já dormindo. Fomos buscar a companhia mágica de nossas luzes. Nossas sim, todo mundo via, conhecia, mas não punham o reparo merecedor. Acostumaram e pronto – as luzes? Ah as luzes, sei estão lá fim de prosa, virou cerca, virou cobra, virou árvore, mas novidade não, nem te ligo. Perdeu o encanto para os quase todos.
Seguimos a acompanhar o bailado de luz por hora ou pouco. Depois nos colocamos a ir – surpresa – uma acompanhou o batido. Seguiu de longe. Entrou na vila desconfiada. Passou rente a farmácia fechada a anos, desceu a rua. Cruzou a outra rua. Na esquina o bar do Jorginho japonês, meia dúzia com as cabeças presas no dominó. Não adiantou gritar por nome, ninguém olhava.

Cruzou conosco, a meio trote a frente da escola e da igreja, à esquerda desceu rumo ao campo onde o circo ficava. A direita no fim do campo, a esquerda no corredor de gado onde morávamos. Não seguiu mais. Parou no moirão da cerca. Brilhava-brilhava. Descemos até o portão – e ela lá a vigiar. Não sabemos até quando ali ficou.
Sentimos estranha proteção.
Por muito passar de tempo com as luzes compartilhamos. Segredos e mágica.
Mudamos para cidade, as luzes, minhas luzes, as luzes de São Sebastião do Pontal. Se continuam lá não sei. Talvez falte platéia, talvez falte companhia. Hora vou lá de visita. Depois conto. O trecho ainda é longo, tem muita história, acabou não.

william h. stutz
dezembro 2006

Um comentário:

Vera Vilela disse...

Will!!
Seo menino, mas que prosa danada de boa essa.
Fiquei aqui me deliciando com suas letras tão bem bordadas e rebordadas com gostinho de causos do pai.
Maravilha!
Vou aguardar ansiosa a próxima.
Beijos