Rádio cabeça
Foi de um tempo para cá, depois de um baita choque tomado em cerca eletrificada, que ele passou a sentir aquela coisa estranha.
Era um mundo de vozes, músicas e propagandas sem fim em sua cabeça. No começo achava que estava endoidando, procurou recurso com a dona da farmácia que categoricamente afirmou que para aquele tipo de coisa tinha remédio não. Procurou benzedeira, curandeiro, pai de santo e nada de resolver.
Não sabia o que o incomodava mais, se eram as vozes e músicas ou as garrafadas que enjoou de tanto tomar por conta disso. Com o passar do tempo, bem aos poucos, foi acostumando e até dominando as transmissões. E não era que, pensava conformado, por conta da cerca de arame que apartava o touro holandês das novilhas e vacas paridas, tinha ganhado um rádio na cachola!
Amanhecia o dia, era só bater o calcanhar da botina no assoalho que lá vinha uma modinha sertaneja mansa e gostosa.
Na toada que saía de casa rumo à roça de feijão era só dar um tranco no pescoço para esquerda que mudava a estação.
Dominou tanto, amansou de vez o acontecido que não foi uma nem duas vezes que usou do expediente em benefício próprio. Durante a missa de domingo ou em conversa desgostosa, era só importunar que ele simplesmente sintonizava certa estação e punha atenção em música ou caso contado na cabeça.
Esquecia-se do mundo e das conversas sem interesse. Armava um jeito bem falso na cara, que podia ser de sério ou de achar graça, de tal maneira convincente, que todos acreditavam em sua atenção totalmente tomada pela prosa dos outros ali na roda. Qual nada, estava era longe, bem longe com suas ondas falantes, nem sermão de padre emplacava.
Só padecia mais um pouco era em noite de chuva brava, cheia de coriscos e trovões. Pois aí a estática, os chiados e as vozes entrecortadas pareciam mais a mandioca fritando em panela de ferro.
Suplício. Pois de tudo mesmo, desligar de vez não tinha jeito.
Nem a esposa e filhos que, por pior malfeito que fosse o tamanho da reclamação ou arte conseguiam tirá-lo mais do sério. A coisa aqui fora ficava preta? Era só quebrar, dar um tranco no pescoço pra lá ou pra cá que logo achava algo do agrado e se distanciava do mundo. Feliz da vida ficava, e nem de pilha fazia conta. Era uma bênção e aos anjos agradecia todos os dias.
Tocava a vida, tocavam as rádios, ia-se.
Mas de hora pra outra, como que por castigo, as estações pararam de apresentar as notícias da vila e, pior, de tocar suas músicas preferidas. Não mais informavam se ia chover, fazer sol ou cair geada.
Deixou de ficar informado de quem nascia ou quem morria e, por conta disso, perdeu um monte de batizado e enterro.
O que dava agora do começo ao fim era gente vendendo fé e milagre para todos os gostos e bolsos.
Era milagre no cartão de crédito, à prestação, financiado sem juros em até 12 vezes. Quer um milagrezinho? Tem encosto trancando a sua vida? Deu gogo nas galinhas do quintal? Vaca secou leite? Deu coró no milho? Unha encravada? Espinhela caída? Amor não correspondido?
Traição? Orai, bradavam em todas as estações. Temos milagres novinhos em folha, mas são mais caros, temos usados e devolvidos por defeito de fábrica que estão no queima, é coisa pouca, um arranhadinho na pintura, uma amassadinho na lata, um verso trocado, nada que comprometa de todo os resultados.
E não é que, de hora para outra, os mercadores da fé alheia compraram todas as estações de rádio! Achar uma sertanejazinha, uma moda caipira, estava difícil, cada vez mais difícil. (Continua).
Março 2010
Publicado no Ponto de Vista do Jornal Correio de hoje
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