Rádio cabeça [II]
Por onde andavam as modas do Zé Béttio? Vontade de ouvir um Bepe na sanfona, um Bis para o amor, um Loirinha linda.
Um mundo de gente que queria muito escutar. Sumiram com eles. Simplesmente não cabiam naquela rádio cabeça.
Não adiantava dar tranco miúdo, curtinho, pois as estações estavam assim agarradinhas, bem pertinho umas das outras. Só mudavam mesmo eram os tons das pregações. Uns mais calmos, outros chutando baldes e santas. Mas a barganha era a mesma. O reino dos céus por um punhado de tostões era a promessa. Primeira classe no céu ficava bem mais caro, mas um barraquinho em alguma encosta de nuvem, apesar do risco de desabar em chuva, cabia no bolso de qualquer um, assim garantiam. Deus, misericordioso, avalizava, esbravejavam a plenos pulmões os mercadores.
Tudo era promessa. Dava para imaginar os pregadores, suando mais do que tampa de marmita a urrar a salvação em troca de milhão. Agora tormento mesmo, castigo dos céus, acontecia na sua vida de quatro em quatro anos. Aí não tinha saída. Era geral, de cabo a rabo, todas as suas estações cerebrais selecionadas que podiam ser do ombro ao cotovelo, da popa ao dedão do pé, de uma hora para outra, como que num macabro combinado para só, e somente só, aborrecer, passavam a transmitir a mesmíssima coisa.
Liquidação não mais de passagem para o céu, mas de promessas mirabolantes, de galanteios e bajulações para quem chamavam na maior intimidade de “meu povo”. Uma fiada de gente, a melhor gente do mundo, pois era assim que eles próprios se davam a saber e conhecer. Uns que nunca passaram por baixo de uma sombra de pequizeiro ou de torta caviúna da região, falando como se morassem aqui a vida toda.
Chamando os outros por nome como se parente fossem. Até ele foi chamado de caro colega por um que nunca tinha visto nem em fotografia. Bem que desconfiou daquele um que não desgrudava do moço, sempre cochichando alguma coisa no ouvido dele quando alguém vinha chegando.
Melhor rádio dentro da cabeça do que bafo no pé de ouvido, pensava. Nesses períodos, de quatro em quatro anos, chegava a sentir falta da venda de milagres. Jurava que da próxima vez ia encomendar um, se é que tivesse sobrado no estoque. Assim acabava com a ladainha dessa gente sem rosto que falava como se íntima fosse e de pé junto jurava escola para onde nem criança tinha, ponte para onde córregos e riachos eram secos há anos, mata-burro por onde só ele e sua gente tinha de diariamente passar.
Nesses períodos de quatro em quatro anos dava um arrependimento danado do tropeço e de ter escorado na tal cerca. Nesses períodos, só havia um recurso: subia na gameleira imensa na porta de sua casa, chegava lá nas grimpas, nos galhos mais fininhos, levantava os dois braços para cima, abria bem os dedos. Assim conseguia sintonizar uma rádio com voz totalmente diferente, estrangeira, cheia dos “yes we can”. Afinal, do palavreado das suas estações naqueles períodos, pouco se pescava também, tamanha a enxurrada de promessas. O proveito era pouco.
Pior, esse infortúnio durava meses, até beirando novembro. E depois disso, tudo continuava que nem sempre foi. As pontes, as escolas, as estradas, o médico-doutor, o postinho de saúde viravam fumaça na sua cabeça e aos olhos de todos da vila. Voltavam as promessas do paraíso — mas dessas já estava escolado. Quanto ao seu precioso voto, esse só dava mesmo para quem bem fazia.
Publicado no Ponto de Vista do Jornal Correio 10/03
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