quinta-feira, junho 23

Educação pela dor

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Os enigmas impressos em uma obra ficcional, a afinidade com a temática e o estilo, acendem no leitor a curiosidade legítima por conhecer o homem por detrás da obra, sobretudo, as doenças, as neuroses, as inadequações que marcaram sua existência. Daí nasce o nosso gosto pela leitura de ensaios biográficos ou autobiográficos. Dessa forma, através de diários, cartas, esboços de textos, aproximamo-nos da intimidade de um Franz Kafka, por exemplo, homem escrupuloso, complicado e cheio de neuroses que, sendo judeu, viveu no contexto antissemita da cidade de Praga, onde nasceu e morou a maior parte de sua vida.

O sentimento de Kafka, revela-nos o romancista Louis Begley, um de seus biógrafos, era o de ser um intruso: na sociedade preconceituosa de sua época, na sua própria casa, onde vivia obcecado pelo medo do pai, na sua própria pele, descontente com sua imagem corporal. Diferentes suplícios o afligiam: era hipocondríaco, tinha dificuldades para dormir, pesavam-lhe as insatisfações com o próprio corpo, repugnava-o a intimidade sexual e o comer carne, literalmente, era-lhe odioso.

Nosso autor escrevia amiúde para Felice Bauer, uma jovem alemã com quem trocou copiosa correspondência e de quem chegou a ficar noivo, após cinco anos de namoro. Mas Kafka acaba rompendo o relacionamento, e desabafa: A vida é meramente terrível, sinto isso como poucos. Begley chega à conclusão de que a claustrofobia do mundo, tão bem retratada na ficção do autor, espelhava a de sua própria vida.

A existência atormentada de Kafka levou-o a refugiar-se na literatura, cujo impacto sobre o leitor é concreto, profundo, estranho e absurdo. Para o autor de “O Castelo” e ”O Processo”, um livro tinha que ser um machado para o mar congelado, existente dentro de cada um de nós. Esse era, verdadeiramente, o ideal literário de Kafka, cumprido à risca. Suas dificuldades na esfera sexual foram barreiras que ele nunca chegou a transpor. Embora obcecado pelo desejo sexual, os sentimentos de medo, a insegurança, a vergonha do próprio corpo, impediram-no de concretizá-lo. E a relação platônica com Felice Bauer, com quem trocou cerca de setecentas cartas, acabou rompendo-se.

Calcado no estilo de Kafka, no poder de sua narrativa singular, o adjetivo kafkiano ganhou vida própria. Para o psicanalista Enrique Mandelbaum, … kafkianas são situações que se dão em diversos níveis. É a burocracia que entrava e compromete a singularidade e a subjetividade, é o poder desumanizado… e por aí vai. O prezado leitor, certamente, já viveu algo kafkiano na própria pele. Não por acaso, Kafka baseou suas narrativas em parábolas, lendas e mitos – tudo isso constituindo um poderoso e contundente material de denúncia contra o absurdo e as armadilhas grotescas do poder e da burocracia. A nós, seus leitores, resta-nos persistir na resistência continuada, ainda que todas as vozes circundantes gritem aos nossos ouvidos que o caminho é longo, labiríntico, impossível.

O psicanalista Jacques Lacan já dizia que o ser humano é um efeito da linguagem e as formações do inconsciente são estruturadas e reguladas pela linguagem. O próprio Freud rendia uma homenagem especial à poesia, por percehttp://www.blogger.com/img/blank.gifber nela um instrumento de interpretação dos processos psíquicos, pela sua densidade, pelo seu alto poder significante. Os efeitos do trauma no psiquismo levam à produção de sintomas, cuja resolução vai depender da possibilidade de o sujeito representar (simbolizar) o traumático que, dessa forma, deixa de ser um “corpo estranho”, para ser mastigado, digerido, elaborado. Shakespeare (in Macbeth) afirma: …Ponha em palavras o seu sofrimento. A dor que não fala termina por sussurrar a um coração sobrecarregado, pedindo-lhe a explosão.

Shyrley Pimenta


Publicado no Jornal Correio em 21 de junho de 2011 (Aqui em pdf)

Texto publicado com autorização da autora

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